Sociologia da moral e do conhecimento: por um ajuste intraobra durkheimiana da noção de crime

por Nilton de Almeida Nascimento

      O presente texto trata de debruçar-se sobre a sociologia durkheimiana da moral e do crime, apreendendo criticamente o imbricamento de uma e outra dessas temáticas a fim de propor uma avaliação da segunda sob a guisa teórica da primeira. Isso considerando o arcabouço heurístico do próprio Émile Durkheim, de seus continuadores e intérpretes. Dito de outro modo, propõe-se aqui uma revitalização do conceito de crime em Durkheim levando em conta a complexidade progressiva das suas ideias.

      Com este objetivo, é que, primeiro, discutimos a gênese do conceito mencionado. Observar-se-á o modo como aquele fundador da sociologia formula um entendimento científico da moral que lhe permite pôr em perspectiva e tornar verificáveis fatos até então reservados a reflexão dogmática e naturalista. O que lhe possibilita legar às ciências sociais, acadêmicas e aplicadas, a constatação basilar sobre a “natureza” dos atos ditos criminosos, a saber: de que uma ação não é criminosa per se mas que essa qualificação é extrínseca, variável, e, por isso mesmo, objeto passível de explicação das causas que lhes são constituintes e dos efeitos que produz.

      Em seguida, no sentido de testar a abrangência analítica da ideia de crime na maneira como contida em Da Divisão do Trabalho Social, esta será tensionada a acepção de Howard Becker a respeito do desvio. A partir do que se torna possível delimitar precisamente o conteúdo das críticas mais recorrentes ao arcabouço conceitual durkheimiano à época da obra mencionada. Críticas parciais e insistentes principalmente contra o termo “consciência coletiva” e suas implicações interpretativas.

Ao fim desse ensaio, argumentar-se-á quanto a possibilidade de, acompanhando-se a démarche de durkheimiana, remontar o conceito de crime sem perder de vista os caracteres fundamentais indicados por Durkheim, porém reinterpretando-os a luz das pesquisas do mesmo autor sobre os fatos religiosos. Ou seja, uma releitura da ideia de crime que principia situando a sociologia da moral como uma sociologia do conhecimento.

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1. “Laço sintético”: da observação científica dos fatos morais

[…] quando violo a regra que me ordena não matar, por mais que analise meu ato, nele nunca encontrarei a censura ou o castigo; há entre o ato e sua consequência uma completa heterogeneidade; é impossível deduzir analiticamente da noção de assassínio ou homicídio a menor noção de censura ou ignomínia. O laço que une o ato e sua consequência é, neste caso, um laço sintético. (DURKHEIM, 1970, p. 58, grifos do original)

Se um ato não traz inscrito em si a qualidade das reações que se seguirão a sua perpetração, em que plano de realidade deve-se buscar a explicação para a regularidade com que certas práticas engendram uma série de mecanismos sociais em sua direção? Mecanismos de classificação, constrangimento, controle, reparo, consagração… Qual a natureza do elo, pois, que torna ações específicas objeto de efeitos determinados? Excerto do texto a Determinação de do Fato Moral, a epígrafe deste tópico, redimensionada nas questões anteriores, pretende apontar para o núcleo da sociologia durkheimiana. Qual seja: o argumento pela existência de um domínio de fatos sui generes que constituiriam objeto privilegiado de estudo da sociologia. O domínio dos fatos morais[1]. E é como parte deste projeto que a noção de crime emergirá com frequência na obra de Durkheim.

Alçado à condição de conceito, o fenômeno criminógeno permitirá aquele autor articular a dupla face com que a realidade moral se faz notar: uma subjetiva, da ordem dos sentimentos sociais que mobiliza, e outra objetiva, que diz respeito a potência com que os fenômenos de sua compleição se fazem sentir. De um lado, uma pressuposta consciência coletiva autônoma e sensível. De outro, a materialização desta na forma de instituições entendidas num sentido amplo – isto é, do direito consuetudinário, os costumes, até o direito racional, burocrático, por exemplo. Em Da Divisão do Trabalho Social, Durkheim (2010) analisará o modo como a ideia de crime conjuga estas dimensões e serve de mediadora para pesquisa científica da moralidade.

Tese de fôlego, a pesquisa mencionada trata de discutir a variabilidade das características fundamentais de duas modalidades distintas de vínculo social, a fim de compreender em que consiste a divisão do trabalho na modernidade. Vínculos a que Durkheim chamará: solidariedade mecânica e orgânica. Ainda que diferentes quanto a maneira como repercutem na morfologia e fisiologia dos grupos, ambas tipificações mencionadas partilham da definição durkheimiana de solidariedade social como fato moral a que corresponderia a disposição dos indivíduos em sociedade por situarem-se/agirem uns em relação aos outros de acordo com posições predeterminadas (p. 21). Elas distinguir-se-ão analiticamente, entretanto, no quão complexificam-se e fazem sentir aos indivíduos cada vez menos dependentes do todo social quando inverso proporcionalmente estes estarão tão mais necessitados dele (solidariedade orgânica).

Mas em que deverão consistir os dados para investigação de realidade similar a descrita acima? Durkheim atacará essa questão estabelecendo em suas primeiras obras um traçado forte para apartar as regularidades, objeto de estudo da ciência social nascente, das fugazes manifestações da consciência individual (STEINER, 2016, p. 52). É nesse sentido que o direito surgirá em Da Divisão como corporificação, expressão material, corpus verificável dos possíveis que tangem as formas de interação/regulação dos indivíduos pertencentes a uma mesma sociedade (DURKHEIM, 2010, p. 31). E é na análise daquele que nomeará de “direito repressivo”, instância de observação da solidariedade mecânica, que o autor dará sua definição mais completa de crime.

Esmiuçando, portanto, a generalidade dos efeitos (as penas), Durkheim (2010) chegará a discussão a respeito das causas (os crimes). Desde o “mexerico”, a piada, o ostracismo, até o direito moderno, a persistência de sanções, ainda que variáveis em intensidade, espelhará, para ele, a normalidade das transgressões. Nesta perspectiva, o crime estaria situado na ponta de um espectro que vai da contrariedade de indivíduos às ideias e valores de outros indivíduos, que não conta senão com uma repressão inconstante, até a ofensa de noções-típicas que manifestariam a ligação mais estreita, intensa, entre os participantes de um grupo e que mobilizará um instrumental social de expiação (p. 43). É aí que, para Durkheim, a noção de “consciência coletiva” assumirá importância na gradação com que os julgamentos dos agentes acrescentarão ou não a certas ações o caráter de algo reprovável, punível, criminoso (p. 47).

Controverso[2], este conceito deve ser entendido como significando o “conjunto das similitudes sociais” fundamentais (p. 51) representantes dos estados de ânimo (sentimentos) mais característicos, gerais, de uma sociedade. O respeito ao totem, a inviolabilidade dos locais de culto, as interdições sexuais, a propriedade privada, a vida humana… Não obstante a variabilidade destes sentimentos conforme as épocas e sociedades, Durkheim insistirá na estabilidade, autonomia e efetividade com que as manifestações específicas da consciência comum de um povo suscitarão, no entanto, a mesma resposta quando contrariadas: a pena.

Esta, reação social passional e irrazoável cujo liame entre ela e aquilo que reprime é, sempre, moral, isto porque não diria respeito aos caracteres sensíveis do ato, nem a contradição à ideias com alguma circulação média, mas a expectativa difusa de preservação de uma ordem cujos princípios e legitimidade a nenhum indivíduo é admitido que se ignore. Entendimento que conduz Durkheim a paradigmática conceituação sociológica de crime:

[…] não se deve dizer de um ato ofenda a consciência comum por ser criminoso, mas que é criminoso porque ofende a consciência comum. Não o reprovamos por ser um crime, mas é um crime porque o reprovamos. […] pelo simples fato de um sentimento, quaisquer que sejam sua origem e seu fim, se encontrar em todas as mentes com um certo grau de força e precisão, todo ato que o ofende é um crime. (DURKHEIM, 2010, p. 52)

Prevenido contra a pressuposição de que a pulverização do estamento jurídico moderno, que deveria dar conta da igual multiplicidade societária que deve regular, não poder-se-ia ver reduzido a condição de instrumento de vingança social, Durkheim não deixará de indicar a persistência do caráter passional que equipararia o direito primitivo, em matéria de repressão, e o direito penal moderno (p. 56).

Assim, ainda que representada, na modernidade, como instrumento de defesa social, a pena não deixaria de corresponder a uma universal reação mecânica àqueles estímulos à consciência coletiva que o autor denominou crime (p. 57). Isso porque a racionalização do cálculo das sanções de acordo com a delito cometido, no que estabelece ações diversamente punidas, apontaria para a permanência do desejo de expiação como caractere fundamental da pena (p. 59). Fosse um ato de defesa social voltado para o futuro, para prevenção, ela não variaria conforme o curso de ação tipificado, mas em função de o quão mais “empedernido” é o agente criminoso, o “inimigo social”. Nas palavras de Durkheim (2010, p. 60):

Se como foi dito, se tratasse de unicamente de reprimir uma força nociva mediante uma força contrária, a intensidade da segunda deveria ser medida unicamente segundo a intensidade da primeira, sem que a qualidade desta fosse levada em conta. A escala penal deveria compreender, pois, apenas um pequeno número de graus; a pena só deveria variar conforme o criminoso fosse mais ou menos empedernido, e não segundo a natureza do ato criminoso. Um ladrão incorrigível seria tratado como um assassino incorrigível.

Dito de outro modo, no que escalona a gravidade de ações criminosas, quantificando diferencialmente a pena que lhes deve corresponder, para Durkheim, o direito penal “civilizado” nada mais faz que racionalizar/burocratizar as demandas consuetudinárias por vingança/expiação. O que lhe permite arrematar, e justifica, aqui, esta extensa digressão sobre a penalidade:

É a prova de que permanecemos fiéis ao princípio de talião, embora o entendamos num sentido mais elevado do que outrora. Já não o medimos de uma maneira tão material e grosseira nem a extensão do erro, nem a do castigo; mas pensamos sempre que deve haver uma equação entres esses dois termos, tenhamos ou não vantagem em estabelecer esse equilíbrio. Portanto, a pena permaneceu para nós, o que era para nossos pais: ainda é um ato de vingança, já que é uma expiação. O que vingamos, o que o criminoso expia, é o ultraje moral. (idem, p. 60, grifo nosso)

Contra a “tela negativa”[3] da normalidade das transgressões, o que ganha destaque em Da Divisão, portanto, é a autonomia e objetividade do fenômeno da moral. Sendo o conceito de consciência coletiva, ali, o principal significante desta ordem de coisas. Este, permite estabelecer analiticamente o liame entre a desiderabilidade e transcendência com que Durkheim entende, e mais tarde o formulará de forma precisa[4], que os fatos morais se apresentam a verificação científica. Desejáveis, porque sentidos fortemente. Valorizados. Sacros. O crime não configurando outra coisa senão uma contradição em atos a sacralidade dos bens simbólicos mais caros a uma dada civilização (a divindade, a propriedade, a vida, por exemplo).

Quanto a transcendência com que os fatos morais se apresentam, esta observar-se-á na regularidade e potência com que mecanismos sociais, formais e informais, operacionalizam a manutenção e reprodução da moral de um grupo. Nesse sentido, a sanção, quer “talianesca” quer “mais refinada”, aponta para autoridade moral grupal. Ofendida, é sempre em favor dos interesses dela, a sociedade, que se pune o infrator. É dela, ainda que diversamente representada, ora como deus, ora como a utopia política, de quem emana a eficácia com que se criam e cercam aqueles objetos sagrados. É nela, não na realidade sensível, que estão as regras e nela onde se fincam as expectativas de reação contra as ofensas que se lhes dirigem os atos criminosos.

Contudo, questões se impõem a esta leitura durkheimiana do crime e das instituições modernas de controle social pela via da chave analítica fornecida pelo exame da moral. Dir-se-á, em críticas que parecem mais terminológicas que propriamente exegéticas, contra a obra de Durkheim, que a ideia de consciência coletiva supõe um acordo inescapável entre as “mentes sadias” de um todo social. Que esta consciência comum, que se desprende (autonomiza) da base fornecida pelos indivíduos e tem seus próprios critérios de perpetuação, é um delírio conservador em detrimento da percepção das lutas entre grupos de interesses nas sociedades complexas. Que não existiriam, por conseguinte, aqueles “sentimentos fortes e precisos” cuja violação engendra reações, senão em um plano micro, comunitário. Em suma, pôr-se-á em dúvida a operacionalidade do entendimento durkheimiano de crime no que tange a pesquisa sociológica contemporânea[5].

A própria noção de moral, como descrita acima, resta comprometida ante estas críticas. É perseguindo-a, no entanto, como linha de força a ligar alguns dos trabalhos mais importantes de Durkheim, que propomos o alargamento do conceito de crime, considerando os avanços e as reorientações realizadas pelo próprio autor em seu itinerário de pesquisas (OLIVEIRA, 2010; ORTIZ, 1989; STEINER, 2016). Importa, nessa direção, primeiramente, tensionar a acepção durkheimiana precedente do fenômeno criminoso a uma outra concepção clássica da mesma ordem de coisas, a fim de captar as vicissitudes da primeira pelo contraste com uma abordagem que lhe seria antagônica. Referimo-nos a homônima tese de Howard Becker (2008) a respeito do desvio, que, supõe-se, não pecaria nem teórica, nem metodologicamente, nos mesmos pontos que a pesquisa de Durkheim.

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2. As noções de desvio e crime: um experimento

Ambos estudos sociológicos sobre a transgressão de regras. Sociológicos porque empenhados na explicação do social (desvio/crime) pelo social (moral). Assim poder-se-ia resumir as pesquisas de Durkheim e Becker. Ainda que as semelhanças parem nesta sumarização genérica, vale destacar a contiguidade com que os trabalhos desses autores contribuem para delimitação dos objetos de investigação científica do social. O que, naquilo que tange a matéria deste ensaio, leva a repetir a seguinte citação:

[…] não se deve dizer de um ato ofenda a consciência comum por ser criminoso, mas que é criminoso porque ofende a consciência comum. Não o reprovamos por ser um crime, mas é um crime porque o reprovamos. (DURKHEIM, 2010, p. 52)

Para aproximação imediata ao excerto de Becker (2008, p. 27): “desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele.”

Os trechos acima são fulcrais às obras dos autores mencionados e permitem observar, além do lugar-comum do qual partem, os rumos díspares que tomarão em suas análises. Tanto um como outro asseveram a eficácia das coisas sociais (mesmo entendendo-as de forma substancialmente diferente) quando circunscrevem seus objetos de estudo por oposição a percepção que outras disciplinas e/ou correntes de pensamento têm de problemas similares aos que discutem. Contra o senso comum, a psicologia e a criminologia correntes às épocas em que escrevem, Durkheim e Becker encontram-se ao constatar que uma ação não é criminosa/desviante per se, mas que estas qualificações são acrescentadas aos atos, dependem, portanto, de julgamentos, processos de categorização, que são, invariavelmente, sociais. Estes sociólogos diferiram radicalmente, contudo, na forma como selecionarão suas instâncias de observação e reconstrução da realidade social.

De um lado, o holismo durkheimiano. Do outro, o legado weberiano de uma sociologia da compreensão e do conflito. Se Durkheim cuida para evitar a reificação do ideário iluminista de sua época que propalava a premência do indivíduo atomizado e racional como centro de um projeto inelutável de progresso (ORTIZ, 2010, p. 13), partindo em suas reflexões de uma abordagem que vai do todo ao encontro (explicação) das partes; Becker, por seu turno, atenta para as preocupações metodológicas de Max Weber (1992) quanto ao risco da investigação científica, que se realize descolada das ações dotadas de sentido dos agentes, incorrer num “realismo conceitual” que transformaria categorias sociológicas em “personagens míticos” (VANDENBERGHE, 2012, p. 290).

É assim, então, que Becker situará sua monografia sobre o desvio como um estudo dos efeitos resultantes dos processos de interação entre agentes desigualmente dotados de um instrumental de criação e imposição de regras (BECKER, 2008, p. 22). O sociólogo americano, dessa forma, faz descer a pesquisa sociológica de um plano de investigação voltado às estruturas (de regramento) cristalizadas, para com isso dedicar-se a compreensão das práticas e procedimentos por meio dos quais grupos e indivíduos interessados mobilizam a moral como ferramenta em suas lutas.

Para aquele autor, como para Durkheim, a moral redunda autônoma e efetiva no que diz respeito ao entendimento do desvio. Ela, a moral, cria coisas sociais. Fronteiras e distinções, as principais delas – vide o aparato simbólico de estigmatização a atuar sobre os sujeitos incriminados ou incrimináveis[6].

Entretanto, Becker (2008) resiste a modos de apreensão da realidade moral que não mediados pela compreensão das ações e perspectivas dos indivíduos, isto expresso através de um perspectivismo metodológico que insiste na premência de levar-se em conta a posição dos agentes que esforçam-se por estabelecer, ou resistem a, normas e leis (p. 27). Assim, se a tese durkheimiana sobre o crime resulta do trato com o direito repressivo enquanto espelho para visualização e explicação da natureza das ações delituosas. O argumento de Becker, por sua vez, ampara-se empiricamente na lida com as “ideologias”, pontos de vista, de indivíduos e comunidades tidas(os) por desviantes e daqueles que impõem as regras.

É daí que a imagem (conceito) do “empreendedor moral” (p. 129) assume importância na obra do sociólogo americano mencionado acima. Ela aponta para: (1) a natureza manejável da moral, conforme Becker a entenderá; (2) um inerente auto grau de reflexividade atribuído aos agentes sociais em sua linhagem de pensamento. A lei, as normas, nessa definição, são “letra morta”, isto é, tem uma circulação média entre os membros de certa sociedade, porém tendem a permanecer inativas, como em stand by, até que um grupo ou indivíduo tenha interesse em (re)ativar o potencial diretivo, constrangedor, delas – exatamente como no exemplo etnográfico retirado do trabalho de Bronislaw Malinowski e que Becker tomará por mote.

No referido caso exemplar, Malinowski narra o suicídio de um jovem nativo das ilhas Trobriand, que matou-se, dão conta os relatos, em razão de se ter tornado público que, relacionando-se com sua prima, rompeu as interdições sexuais clânicas. Mas, ponto importante, Becker dará destaque a “hipocrisia” geral dos membros da comunidade, que conheciam a violação cometida pelo rapaz mas toleravam-na veladamente até a reivindicação moral perpetrada pelo prometido noivo da moça envolvida (MALINOWSKY, 2003, p. 64). Configuração de fatos que permite a Becker pinçar a variável da reação social a atos em desacordo com a regra, a fim de plasmar sua ideia de desvio:

Se um ato é ou não desviante, portanto, depende de como as pessoas reagem a ele. Uma pessoa pode cometer um incesto clânico e sofrer apenas com mexericos, contanto que ninguém faça uma acusação pública; mas será impelida à morte se a acusação for feita. O ponto é que a resposta das outras pessoas deve ser vista como problemática. O simples fato de uma pessoa ter cometido uma infração a uma regra não significa que outros reagirão como se isso tivesse acontecido. (Inversamente, o simples fato de ela não ter violado uma regra não significa que não possa ser tratada, em algumas circunstâncias, como se o tivesse feito.) (BECKER, 2008, p. 24)

Com efeito, Becker postula que o desvio conceitua certos cursos de ação e/ou grupos de indivíduos os quais, no que friccionam regras estabelecidas, convivem com um potencial latente de acusação moral. Latente porque relacionado ao predicado moral da acusação como uma modalidade reação social. Esta, no sentido de Becker, é, fundamentalmente, aparelhável, seu estopim e manutenção, portanto, agenciáveis por agentes sociais interessados. A moral constituindo, nesse sentido, fonte da legitimidade dos reclames por instituição, reparo ou punição. Emerge dessa equação, como desviante, tudo aquilo passível de se tornar objeto de um investimento normativo em vistas de uma moralidade que se pretende hegemônica.

A acusação para Becker assume assim o lugar da pena em Durkheim. Reações, uma e outra, que, entretanto, indicam o entendimento diverso que esses autores terão do fenômeno moral. Se, para o primeiro, os valores e interdições morais, variáveis de acordo com os grupos, são maneáveis e servem a um jogo de sobreposição de interesses. O segundo não deixará de apontar para existência, mesmo nas sociedades modernas, de “sentimentos fortes e precisos” cuja violação segue-se a desestabilização de uma lógica de ordenamento da realidade estruturada num processo amplo de socialização. Contraste esse que conduz as questões abaixo.

Como, a partir de Durkheim, pensar a constante, indicada por Becker, com que, em uma sociedade complexa, um corpo de valores e normas prevalece sobre outros e sustenta poderes diferenciais? E, quanto ao direito repressivo, persistente na contemporaneidade, deve-se lhe reputar o status analítico unicamente de troféu dos embates repisados por Becker? Se, ao contrário, seguirmos as considerações durkheimianas sobre este tema, que “bem sacro”, historicamente estruturado, o aparelho burocrático penal atual intenta preservar? Por fim, a moral, categoria sociológica, conforme pensada por Durkheim, segue pertinente a explicação do crime enquanto representação coletiva, isto é, como uma realidade simbólica/social?

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3. Sociologia da moral como sociologia do conhecimento: o conceito de crime

É com fins de remate da proposta inicial deste ensaio que, antes de passar às repostas das perguntas anteriores, selecionamos o seguinte trecho da escrita de Durkheim, extraído, no entanto, do livro de Philipe Steiner (2016):

Foi somente em 1895 que tive a nítida percepção do papel capital exercido pela religião na vida social. Foi neste ano que, pela primeira vez, eu encontrei o meio de abordar sociologicamente o estudo da religião. Para mim, isto foi uma revelação. Este curso marca uma linha divisória no desenvolvimento de meu pensamento, ainda que todas minhas pesquisas anteriores tivessem de ser repetidas para ficarem em harmonia com esses novos pontos de vista. (Durkheim, 1975, apud Steiner, 2016, p. 42)

Ante esse incisivo enunciado, Steiner (2016, p. 48) anota duas opções que se apresentam ao intérprete da obra durkheimiana. A primeira, pelo argumento de uma descontinuidade radical entre momentos da produção daquele fundador francês da sociologia. E, outra, pelo entendimento de que Durkheim efetuaria, com as descobertas realizadas no seu estudo sobre a religião, uma manobra teórica e metodológica de reelaboração das problemáticas que outrora já o mobilizavam. Steiner, como Ortiz (1989, p. 7) antes dele, considerará, para o seu trabalho de interpretação crítica, a hipótese da “inflexão”, “reorientação”, que o fenômeno religioso teria produzido na sociologia durkheimiana.

E se, tomando em conta os parâmetros dessa inflexão, voltamo-nos às conclusões de Durkheim a respeito do crime? Será possível alarga-las, inseri-las no movimento de “harmonização”, empreendido pelo próprio autor, das suas categorias de pensamento? Atacando as questões que findam o tópico anterior sob o mote da conceitual da moral e da sociologia do conhecimento, entendemos que sim.

Iniciando pela problemática do direito penal moderno e as clivagens de poder entre grupos sociais que favoreceriam a instituição de uma moral dominante, com seus valores e sanções, em detrimento de outras moralidades.

Uma abordagem stricto senso da importância do conceito de consciência coletiva na definição durkheimiana de crime conduziria a um impasse diante da provocação anterior. Ora, se não há acordo possível entre distintos modos de conceber o certo e o errado em uma sociedade composta por inúmeras outras coletividades, senão uma disputa incessante pela imposição de um só “certo” e das consequências que se seguem ao desrespeito a ele, não haveria, consequentemente, na modernidade, um só valor daqueles que, representado bem máximo por todos os indivíduos, cobraria reparação equivalente e por todos legitimada quando do seu afrontamento.

Entretanto, atentando para pesquisas como as de Márcio de Oliveira (2012), pode-se observar como a ideia de “consciência coletiva” dá lugar, na continuidade do pensamento de Durkheim, a de “representações sociais”, que, matizada teoricamente, por contraste indica: (1) a função desempenhada pelo primeiro conceito, de apontar para objetividade do domínio social como um âmbito de estudo factível (p. 72); e (2) a maior flexibilidade do segundo, representações, no que aponta para o modo como a realidade social, ao mesmo tempo que autônoma, é inculcada nos indivíduos (por meio da educação em sentido amplo) e passa a compor um aparato cognitivo de apreensão da realidade, que não implica uma leitura uníssono de acontecimentos em geral, mas possibilita um intercâmbio mínimo de significados (p. 84).

É assim que a toda uma tradição de estudos possibilitar-se-á pensar o indivíduo, na sociedade moderna, como, ele também, uma representação coletiva, um valor (DURKHEIM, 1975; DUMONT, 1985; MAUSS, 2003). Isto é, lugar-comum a dar razão de ser a todo um conjunto de instituições, sendo ele mesmo o produto de um maquinário social de construção da realidade. É ele, o indivíduo, na modernidade, o objeto transcendente fortemente marcado pelo direito penal contemporâneo (STEINER, 2013, p. 48). O que não implica dizer que, em média, os indivíduos representem-se racionais, reflexivos e atomizados, tal qual o sujeito passível de culpabilização penal, mas que esta representação social circula e imiscui-se a uma série de outras representações fundamentando práticas sociais.

Ou seja, o “individualismo moral”, em Durkheim, faz-se dominante, não porque arbitrário e constrangedor de manifestações simbólicas concorrentes, mas pela maneira como, num processo histórico de longo prazo, amalgama-se a tantos outros repertórios imagéticos e galga legitimidade (torna-se desejável) sob uma pletora de pontos de vista (representações individuais), engendrando, no mesmo movimento, mecanismos para própria manutenção (instituições, sanções, leis).

Estamos agora em melhores condições de compreender por que razão certos espíritos crêem dever opor uma resistência opiniosa a tudo que lhes parece ameaçar a crença individualista. Se qualquer iniciativa dirigida contra os direitos do indivíduo os revolta, não é unicamente por simpatia com a vítima; também não é por receios de terem igualmente de se sujeitar a semelhantes injustiças. Mas é que semelhantes atentados não podem deixar de ser castigados sem comprometer a existência nacional. É efetivamente impossível que eles se produzam em liberdade sem afetar os sentimentos que eles ferem; e como estes sentimentos são os únicos que nos são comuns, não podem enfraquecer sem que a coesão da sociedade seja fortemente afetada. Uma religião que tolera sacrilégios abdica de qualquer autoridade sobre as consciências. (DURKHEIM, 1975, p. 245)

Quanto a problemática das ideologias de classe dominantes que subalternizam e, no extremo, criminalizam outras moralidades, Ortiz (1989) realiza uma interpretação antropológica fina dos desdobramentos do movimento durkheimiano de inserção do sagrado no âmago das sociedades modernas (p. 18). Isso, considerando que, se a religião, para Durkheim, seria um sistema de representações (DURKHEIM, 1996, p. 475), um modo de classificação e conhecimento da realidade, por meio do qual os indivíduos situam-se uns em relação aos outros e em relação ao meio que percebem, a bipartição de fé das coisas e do mundo entre sagrado e profano, no seu valor cognitivo, poderia ser estendida às polaridades “laicas”, tais quais, legitimo/ilegítimo, cidadão/criminoso, assim como en passant propôs Robert Hertz:

A evolução da sociedade substitui este dualismo reversível por uma estrutura hierárquica rígida: ao invés de clãs separadas ou equivalentes aparecem castas ou classes, das quais uma, no topo, é essencialmente sagrada, nobre ou devotada a trabalhos superiores, enquanto outra, embaixo, é profana ou suja e ocupada com tarefas vis. O princípio pelo qual se atribui aos homens posição e função permanece o mesmo: a polaridade social é ainda um reflexo e uma consequência da polaridade religiosa. (HERTZ, 1980, p. 106)

E, na leitura de Ortiz:

Como Durkheim e Mauss observam, classificar é hierarquizar. No entanto, Durkheim hesita em dizer claramente que as relações de inclusão e exclusão correspondem a uma inclusão/exclusão social. […] Ao identificar o conformismo lógico à sociedade como um todo, Durkheim encobre evidentemente os interesses de grupo e de classe, porém, desde que nos libertemos de sua visão conservadora, percebemos claramente que a ideia de consenso implica relações de poder. O que é classificado do lado do sagrado possui valor superior ao que é associado ao profano. (ORTIZ, 1989, p. 23)

Dessa forma, se no curso do pensamento de Durkheim o fato moral e o fato religioso se tornam intercambiáveis, apontando um e outro para o domínio dos ideais, das representações sociais, não é menos plausível que a moral, como a religião, de acordo com as citações destacadas anteriormente, corresponda a um modo de conhecimento, um aparato cognitivo, estruturado, porque consequência de uma processo de socialização, e estruturante de todo um conjunto de práticas em relação de “cumplicidade ontológica” com o meio simbólico e material no qual se gestam. Algo como na concepção bourdiesiana de illusio, na qual um esquema/quadro de classificações mediatiza a apreensão do real de modo diferencial/variável de acordo com as relações de poder que estruturam socializações distintas entre as classes numa sociedade complexa (BOURDIEU, 1996, pp. 139-140).

Assim, se nos voltamos ao material etnográfico contemporâneo sobre o crime, as organizações criminosas e as instituições de controle social[7], onde salta aos olhos a descrição analítica das moralidades, que nessas instâncias se evocam e produzem, parece profícua uma leitura durkheimiana do conceito de crime como referência a um conjunto estruturado e estruturante de práticas interpretadas/vivenciadas moralmente.


Notas

[1] Para Célistin Bouglê (1970), desde Da Divisão do Trabalho Social, até As Formas Elementares da Vida Religiosa, toda sociologia durkheimiana se relaciona “mais ou menos diretamente com a sociologia da moral” (p. 8).

2] Durkheim admite e discute as dificuldades apresentadas pelo termo “coletivo”, que não deverá ser confundido analiticamente com o termo “social”. Para o autor, esta última expressão é abrangente e deve nomear toda “vida psíquica” socialmente produzida, inclusive aquela gestada de forma segmentar, que não é menos social por ser especializada, mas que, ao contrário, tende a ser expressão do desenvolvimento da solidariedade orgânica (DURKHEIM, 2010, p. 50).

[3] Randall Collins, referindo-se a obra O Suicídio, é quem metaforiza assim esse recurso estilístico de Durkheim na apresentação de suas pesquisas. Vale a didática citação:

Durkheim não estava interessado no suicídio propriamente dito, mas em mostrar como operam as condições normais de integração social. O suicídio simplesmente serviu como uma conveniente comparação, como uma tela negativa para o primeiro plano positivo. Tal como Durkheim afirmou em outro contexto, as forças que mantém a sociedade unida são invisíveis. Aprendemos sobre elas quando são rompidas, tal como quando andamos sobre uma janela de vidro. (COLLINS, 2009, p. 160, grifos nossos)

[4] Determinação do Fato Moral (1970)

[5] “Em nosso entender, os pontos fracos do critério de Durkheim são: em primeiro lugar, parte do falso e indemonstrável pressuposto do consenso coletivo original, tão grato aos seguidores da tese rousseauniana do contrato social. Uma afirmação desta natureza, não pode ser feita a não ser para pequenas sociedades primitivas de normas na sua maioria espontâneas, e que em todo caso são sociedades bem integradas. Para as sociedades diferenciadas, de difícil manejo e de variados núcleos culturais, o consenso coletivo não pode significar mais do que um critério imposto pelos grupos que detém o poder e que simplificam assim as divergências em benefício dos seus interesses.” (CASTRO, 1983, p. 87)

[6] No Brasil, ver a importância do conceito de “sujeição criminal”, de Michel Misse (1999).

[7] Alguns deles: Schiritzmeyer (2012); Aquino (2012); Grillo (2013); Biondi (2014).


Referências

 AQUINO, Jania Perla. Príncipes e Castelos de Areia: Um estudo da performance nos grandes roubos. São Paulo: Biblioteca 24×7, 2010.

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Como citar este texto:

NASCIMENTO, Nilton de Almeida. Sociologia da moral e do conhecimento: por um ajuste intraobra durkheimiana da noção de crime. Blog Observare: 2017. Disponível em: https://observare.slg.br/sociologia-da-moral-e-do-conhecimento/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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