Bourdieu e seu texto-manifesto por uma sociologia reflexiva

         Apesar de muito conhecido pelos conceitos de campos e habitus, Pierre Bourdieu (1930-2002, França), notória figura da sociologia contemporânea, também fez incursos em vários outros temas, entre eles o do próprio fazer sociológico, tornando-se também um autor indispensável no pensar de uma epistemologia das ciências sociais. Introdução à uma Sociologia Reflexiva é um texto que fora originalmente apresentado em um seminário de exposição de projetos de pesquisas na École des Hautes Études em Sciences Sociales, em outubro de 1987. Hoje esse texto se encontra, na versão brasileira, como o segundo capítulo do livro Poder Simbólico.

         Neste texto Bourdieu vai trazer questões pontuais sobre o que ele chama de sociologia reflexiva e sobre a atuação científica do sociólogo. Seu texto se divide em (I) Ensinar um ofício; (II) Pensar relacionalmente; (III) Uma dúvida radical; e (IV) A objetivação participante.

         A primeira reflexão trazida por Bourdieu neste texto está centrada justamente no fazer pesquisa, um fazer que se entende muito mais na perspectiva de um ofício, resgatando inclusive a metáfora da oficina. Para Bourdieu o ensinar e o pesquisar não são dotes naturais ou capacidades místicas exclusivas, mas um trabalho, um ofício que pode ser aprendido e ensinado, um aprender-fazer muito mais prático do que teórico ou expositivo. Ele resgata a metáfora do treinador físico que acompanha seus alunos num processo muito mais próximo, constante, mostrando na prática “como” fazer, e no caso das ciências, como fazer pesquisa, como criar objetos e como relacionar as teorias e percepções intelectuais com os instrumentos de coleta e métodos de inserções em campo.

         Uma outra preocupação logo aqui apresentada surge no fato de que, para ele, o “homo academicus gosta do acabado” (2007, p. 19), ou seja, gosta de pesquisas prontas e conclusivas e busca enfatizar, em geral, aquilo que são os resultados da pesquisa, dando pouca atenção ao processo, evitando apresentar as formas pela qual aquela pesquisa se realizou. Bourdieu defende uma espécie de desarme científico-intelectual, e isso se pratica quando o pesquisador expõe suas dificuldades, hesitações, empecilhos que surgiram ao longo do processo, bem como quando apresenta de forma detida sobre como aquela pesquisa se realizou, quais os métodos, entre outros aspectos que expõem o pesquisador à crítica da comunidade, evocando o princípio da transparência. Bourdieu já se demonstra aqui como um racionalista, que percebe a ciência como um ato racional e pensante, que carece de esforço, rigor metodológico e cuidado na construção do objeto científico, objeto esse que não pode ser confundido com objetos de interesse social. Essa postura se configura como uma posição de pesquisador-não-nulo, um sujeito que está totalmente imbricado com a pesquisa e que não somente aguarda passivo a realidade e as informações como pretensamente verdadeiras. Para Bourdieu é preciso construir o objeto, ter um insight sociológico que tire da realidade mais que as aparências, fazendo assim um contraponto importante ao mito da neutralidade científica ou mesmo ao ideário de pesquisador-passivo-nulo.

         A segunda proposta de Bourdieu está no fato de que o sociólogo precisa pensar relacionalmente. Para Bourdieu é importante que o pesquisador não tenha um pensamento setorista em relação a teoria e ao método e isolado em relação ao contexto do objeto. Aqui o pesquisador precisa cultivar o hábito de perceber as indissociáveis relações que existe entre teoria e método, configurando tessituras entre aquilo que se pensa e aquilo que se faz. Bourdieu (2007, p. 24) sustenta que “as opções técnicas mais <<empíricas>> são inseparáveis das opções mais <<teóricas>> de construção do objeto”  o que também surge como contraponto à percepção cartesiana de fragmentação e separação.

         Outro argumento, de cunho relacional, está na consideração de que os diferentes métodos podem coexistir em harmonia na construção do saber sociológico. Para ele as técnicas de recolha de dados não precisam ser colocadas isoladamente em uma mesma pesquisa, e não é saudável fazer condenações metodológicas a uma ou outra técnica específica, mas relacioná-las e fazê-las, muitas vezes, coexistir. O próprio Bourdieu exemplifica com um de seus trabalhos, onde ele usou mais de uma técnica, conduzindo uma abordagem quantitativa com suporte qualitativo: “combinar a mais clássica análise estatística com um conjunto de entrevistas em profundidade ou de observações etnográficas (como fiz em La Distinction)”. Para ele a pesquisa é uma atividade séria e complexa, que requer rigor, vigilância das condições, e adequação ao problema. Cada pesquisa precisa ter uma percepção artesanal, ou participante do pesquisador, onde esse deve construir o objeto e perceber a melhor forma de coleta de dados e adequações metodológicas. Outro pensar relacional está na percepção do objeto dentro de seu contexto e que “o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades” (2007, p. 27).

         Dentro desse ensaio-proposta por uma sociologia reflexiva, surge como terceiro elemento o fato de que o saber científico, em especial o saber sociológico, deve superar o senso comum. Para ele “construir um objeto científico é, antes de mais nada e sobretudo, romper com o senso comum” (2007, p. 34). Esse senso comum se configura tanto nas suas formas mais populares, como institucionalizado, ganhando caráter oficial. O sociólogo pesquisador precisa superar o senso comum e estabelecer relações de profundezas empírico-metodológicas e teóricas que permitam construir um objeto válido, e superar as aparências da realidade. Essa pressuposição de Bourdieu é um dos aspectos centrais de sua percepção sociológica, e que vai contrapor perspectivas relativistas de autores pós-modernos.

         Por fim, Bourdieu vai fecha este ensaio-manifesto com a apresentação de mais dois pontos que ele chama de double bind e conversãoobjetivação participante. Bourdieu vai fazer toda uma reflexão da posição do sociólogo, sua profissão, e vai resgatar a ideia de um habitus academicus que as vezes não percebe os limites da experiência social e cria establishment sociológicos que em inúmeras vezes se perde na “ilusão da compreensão imediata” (2007, p. 45). Bourdieu vai propor o que ele chama de Pedagogia da Pesquisa, pedagogia essa que será marcada por uma postura por ele chamada de objetivação participante. Essa reflexão sobre a objetivação vai estar na percepção sustentada por ele de que o objeto precisa ganhar suas considerações teóricas a partir da participação com o objeto sociológico, ou seja, o pesquisador não pode chegar ao objeto com uma espécie de camisa de força teórica, movida pelos seus interesses, e então deixar de perceber as peculiaridades dos fenômenos e fatos sociais que muitas vezes, no decorrer da pesquisa, vai solicitar do pesquisador novos olhares teóricos e novas abordagens e técnicas metodológicas. Adicionalmente, deixar de considerar outros objetos por causa de um determinante interesse prévio, seria igualmente imprudente. Bourdieu considera que:

 “é sem dúvida o exercício mais difícil que existe, porque requer a ruptura das aderências e das adesões mais profundas e mais inconscientes, justamente aquelas  que, muitas vezes, constituem o <<interesse>> do próprio objeto estudado para aquele que o estuda, tudo aquilo que ele menos pretende conhecer na sua relação com o objeto que ele procura conhecer” (BOURDIEU, 2007, p. 51).

          É bem perceptível a ideia que Bourdieu traz sobre o cuidado que o pesquisador deve ter em relação a origem do interesse sobre o objeto e a necessidade de abertura para novas hipóteses, preservando uma postura de flexibilidade. Considerando que é preciso ‘compartilhar’ com o objeto as diretrizes de como se deve perceber e tratar o próprio objeto. É mister para Bourdieu adotar uma postura de abertura com rigor, com esforço, dando mais atenção à pesquisa em si, tentando se desvencilhar das hierarquias acadêmicas e dos efeitos retóricos e preservando uma forte curiosidade e vontade de obter a verdade, apesar disso ser um processo infinito, intenso e custoso para o pesquisador.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. Capítulo 2.

Como citar este texto:

SANTOS, Harlon Romariz Rabelo. Bourdieu e seu texto-manifesto por uma sociologia reflexiva. Blog Observare, 2013. Disponível em: < https://observare.slg.br/2013/10/03/resumo-do-texto-introducao-a-uma-sociologia-reflexiva >. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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