Os sujeitos do poder

Resenha por Alef Lima

BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

  Não há gênero que não seja uma posição de angústia, afinal a questão colocada, em ser homem ou mulher, ou nenhum dos dois, extravasa um único sentimento. O papel de gênero, sua performatividade, seus ensejos, modos de subjetivação ou propostas ontológicas, escapam a unilateralidade das emoções, por isso, todas as formas de poder e suas assimetrias se tornam tão instáveis sobre si mesmas que a ambivalência de uma posição de poder entre o sujeito submetido e a eclosão do poder “dominador” se confundem. Talvez, Butler queira afirmar que as formatações subjetivas dos assujeitados são imanentes a condição que os caracteriza e assim duplica-se a função do poder no mais-além da ordem. O poder instala a subjetividade possível.
  O segredo por trás da constatação inevitável é o modelo argumentativo da autora – o poder vai se caracterizar como princípio da sujeição; o que não elimina o fato de ser fruto da desigualdade, das corporalidades normativas, das instâncias da consciência ou da suposição de uma consciência culpada. Butler vai mais fundo em nossas pressuposições filosóficas, ela religa uma ideia a muito desguarnecida: o poder como fenômeno psíquico advém das margens do psiquismo das relações sociais – fundador de redes de socialidade que invadem os indivíduos na tenra idade e neles possibilitam a cognoscibilidade do mundo e dos outros. A alteridade do poder não deve ser “misturada” com probalidade de dominação e obediência, a alteridade é anterior a função do Eu, no limiar do argumento, ela é em sentido foucaultiano, seu dispositivo.
  Mas, e a resistência? Não existe sobre o que resistir em Butler, na realidade, a resistência se explica como limite dessa luta angustiada das subjetividades que ainda não se perceberam imanadas de poder porque fundadas nele. Digo de modo mais caricato, com uma frase de Ariano Suassuna: “Em volta do buraco tudo é beira”. O contexto da filósofa é repensar que a margem, a “beira”, é que torna o “buraco”, o poder, possível. O jogo de teses psicanalíticas é útil nesse aspecto, o empoderamento da culpa, a consciência do Supereu freudiano e das prerrogativas da evocação dos sujeitos em Althusser em nada eliminam que por mais que se pretenda externalizar o surgimento da dimensão constituinte das formas de subjugação elas nos levam ao círculo de liberdade e sujeição infindo que aos poucos nos remete as posicionalidades melancólicas dos sujeitos: o gênero é o melhor exemplo disso.
  Entretanto, o poder sobre os corpos e das formações conscientes explicam parcialmente a questão do sujeito em Butler, afinal, ao duplicar e se valer da ambivalência das sexualidades e das identidades de gênero encenamos o arbítrio cultural, o que Freud chamaria do imaginário de uma fantasia. A performance logo transforma o gênero no duplo, no intocável, porque nunca existente em integralidade – um pedaço do Eu ancestral que reencenamos na tentativa de reencenar a vida psíquica de nossos pais. O grande truque é reconhecer a fantasia no espelhamento da angústia que ela remete, escolher em meio ao jogo e existencialmente jogar – é preciso mais uma vez matar os pais, as mães ou o quer que fosse na virada de assujeitados, para sujeitos do poder.
  A proeminência da proposta teoria de Butler não necessariamente está alinhada de modo repentino a dimensão psicologizada do poder, ao que por muito tempo, diferenciou e classificou o conceito de poder enquanto substrato dos arbítrios sociais e simbólicos. Na realidade, a autora nos mostra que as bordas às quais o poder se mobiliza nunca foram totalmente externas ou internas, na fronteira entre o psiquismo individual e a suposição de que nada escapa ao social – subiste a indiferença, a impossível homologia entre os campos de existência. Com isso, a teoria social é ferida em sua pressuposição e a psicanálise se revela contextualizada em suas circunstâncias culturais. Mas, o que exatamente Butler propõe em substituição a percepção binária do poder? Bem, a ideia é complexa e simples: o poder não é estanque. Trata-se de compreender o dinamismo psíquico do poder em meio a possibilidade também de sua dinâmica social. Ao que, a homologia entre as esferas tornar-se obsoleta, afinal a movimentação de ambas as tornas insondáveis por mecanismos binários.
  A dinâmica no poder – ao que a filósofa chama de vida psíquica, é uma abordagem inovadora de flexionar a naturalidade pela qual as ciências sociais vêm se segurando em objetos que se creem parados. Assim, os sentimentos como a melancolia fundadora do princípio de todo o gênero, é importante por traduzir as transações psíquicas que solidificam as posições sociais, essas trocas, as pulsões freudianas, em nada podem ser resumidas a ideia de energia – e sim, compreendidas enquanto formações de subjetividade. Decorre, portanto, que o poder se configura como o produtor de subjetividades, essa capacidade produtiva de um trabalho subjetivo do poder é o que se realiza em seu efeito.

Como citar este texto:

LIMA, Alef de Oliveira. Os sujeitos do poder. Blog Observare: 2019. Disponível em: https://observare.slg.br/os-sujeitos-do-poder/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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