Duas leituras contemporâneas sobre o racismo no Brasil e no mundo por Alef de Oliveira Lima
Vivemos em uma sociedade racista cujas bases coloniais traduziram uma forma histórica de continuidade de preconceitos, apagamentos, desrespeitos e invisibilização. Nessa direção, pensar o racismo enquanto um fenômeno social de larga escala, com um enraizamento microssociológico que atravessa/devasta subjetividades, requer uma orientação no olhar para além do óbvio e do previsível. Quando tratamos da racialidade, da raça, das relações étnico-raciais no escopo da vida social cotidiana, estamos cerceados por um processo de naturalização (não apenas virtual), que se constitui difuso por diferentes hábitos, práticas, gestos, discursos e rituais. Aqui, apresento ao público interessado duas obras fundamentais nos debates contemporâneos a respeito das questões raciais na realidade brasileira e mundial. Cada uma, ao meu ver, revela a insistência da racialidade/racismo em formulações de experiências sociais vividas e por seu turno, constroem formas de enfrentamento eticamente sensíveis ao desvendar os sentidos opressivos do ato racista.
Leitura I:
ALMEDIA, Silvio. Racismo Estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
O jurista, filósofo e professor de direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo/SP), fez parte dos escritores que deu origem a Série de Livros Feminismos Plurais, organizados pela filósofa Djamila Ribeiro. Em seu livro, Almeida nos oferece um panorama discursivo desconfortável: a realidade estrutural do racismo. Além de esclarecer as tipologias do racismo em suas formas individuais (pessoais e interpessoais) e institucionais (organizacionais e suprapessoais), ele nos apresenta a racialidade enquanto um atravessamento persistente e constituidor de relações, atitudes, práticas e representações. Nesse sentido, o racismo não pode ser subsumido de maneira a ser considerado um hábito de “almas sebosas” ou pessoas de mentes fechadas. Em seu ponto Almeida aponta o racismo na contemporaneidade que se instalou e se mantém nos diferentes setores sociais: economia, política, nos padrões ideológicos, na constituição de subjetividades e no direito (leis e jurisdições).
Ele nos alerta, bem no início do texto, acessível por sinal, que sua perspectiva visa desenvolver um olhar sobre raça e racismo desde ponto de vista da Teoria social. Desse modo, o racismo (ou todo o racismo) é estrutural na medida em que, por uma série de formações histórico-sociais, se eivou a condição de relações de poder assimétricas entre brancos e negros. Talvez, a compreensão do racismo estrutural seja inteligível e desagradável as pessoas brancas por insistir de modo claro acerca da posição supremacista da branquitude em se desvencilhar do importante debate dos privilégios, naturalizações que conformam uma situação de estrutura social política estável às custas do apagamento de demandas econômicas e culturais de sujeitos negros/as/es nas diferentes esferas de existência. Dito isso, Almeida, confere ao racismo estrutural a potencialidade de evidenciar a necessidade de ações antirracista – porque ser apenas contra o racismo não está funcionando.
Leitura II:
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
Grada Kilomba é psicanalista/psicóloga, e tal formação define parte do modo como escolheu trabalhar as temáticas do gênero e do racismo (temas interseccionais em sua obra), também é escritora e artista de múltiplas interfaces. Sua área de pesquisa e produção teórica abrange problemáticas do pós-colonialismo, trauma e memória. Não é por acaso que Memória da Plantação, livro de abordagem transdisciplinar tenha ganha uma audiência mundial. Nele, Kilomba elabora crônicas de cunho psicológico e social sobre a realidade psicológica do racismo – isto, de um ponto de vista curiosamente imersivo (diria enquanto antropólogo quase etnográfico). O argumento é epistemológico: o debate racial, quando referido a negritude venha acompanhado de interfaces de poder, dor, trauma e dessubjetivação (processo de desumanização das Pessoas Pretas).
Outro fator de contemporaneidade em suas perspectivas são as maneiras que a autora foca na desconstrução de um conhecimento ou uma postura científica universal ou universalizável. Ela relança sobre as discussões do racismo, da branquitude e a situacionalidade irrestrita de todas as formas de conhecimento. No livro, as histórias de diferentes mulheres Negras são recontadas, centradas em suas cargas simbólicas e sociais, interpretadas a luz da racialização de seus corpos e dos modos que são tratadas frentes a diferentes espaços de existência. É importante lembrar que metodologicamente Kilomba expõe e desdobra um método de pesquisa focado nos sujeitos – não em nível representacional – mas, no patamar de uma saturação de vivências que se coligam ao fenômeno do racismo com diferentes entradas: o cabelo, a sexualidade, a língua, a exotização, a nacionalidade, o gênero, as faixas etárias, as tonalidades da pele, o suicídio, as memórias, a negritude, a cidadania, traumas e memórias. Sua leitura é recomendável e também imprescindível.