Conceituação de classes sociais na América Latina em Florestan Fernandes

  Paulista, nascido em 22 de julho de 1920, de origem pobre, Florestan Fernandes superou dificuldades econômicas e culturais, consolidando-se como um dos maiores acadêmicos do Brasil, sendo sociólogo referência em muitas áreas de estudo sobre o Brasil e América Latina. Fernandes ingressa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e é em São Paulo que faz sua carreira acadêmica, formando gerações de pesquisadores como Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e José de Souza Martins, dentre outros. A produção sociológica de São Paulo acaba por assumir uma posição científica singular diante da produção sociológica/antropológica brasileira como um todo, tal característica se faz sobretudo pela ação de Florestan Fernandes de manter um tipo não-ensaísta de produção sociológica. A sua vida política também é fecunda, participa na criação do Partido dos Trabalhadores e chega a ser deputado federal constituinte.

  O texto aqui debatido é o “Problemas de Conceituação das Classes Sociais na América Latina”. Ele começa com a apresentação de três conceitos clássicos de classe social corrente: (I) uma primeira que trata do conceito como extrato social, um sistema de castas, hierarquizados; (II) como comunidade de interesses, percebidos socialmente; e (III) um outro conceito como um arranjo societário baseado na economia, inerente ao sistema capitalista. Ao apresentar esses conceitos Florestan, numa posição de síntese e de apropriação contemporânea dos conceitos para o contexto latino americano/brasileiro, coloca, após argumentação: “Está claro que tais categorias precisam ser adequadas, empírica e interpretativa, ao presente e às realidades da América Latina, um esforço que já havíamos feito e continuamos neste estudo” (FERNANDES, 1977, p. 174).

  O argumento de Florestan caminha no sentido, então, de conceber uma apreensão contextual e específica do processo de desenvolvimento social e capitalista na América Latina. A modernidade e o empreendimento capitalista não podem ser negados mas precisam ser contextualizados e analisados de forma singular, permitindo assim, plano histórico e teórico para a conceituação do conceito de classes sociais na América Latina, sobretudo o Brasil. Fernandes (1977, p. 185, grifo nosso) coloca:

Esta interpretação não pretende negar nem a “modernidade” nem o caráter capitalista do empreendimento colonial. Quer somente repô-lo em seu contexto estrutural e histórico. Se as coisas fossem diferentes e a descolonização fosse ao mesmo tempo econômica, cultural e política, haveria uma transição imediata do “modelo colonial” para o “modelo europeu”. No entanto, o tipo de capitalismo existente na Europa não estava incubado nas formas de vida coloniais.

  As formas de vida colonial, tanto no sentido das classificações sociais quanto dos valores que organizavam a sociedade colonial, acabam por moldar, em certo sentido, a modernidade e a ordem capitalista que aqui chega. Esta seria, portanto, o centro e aspecto singular de uma análise de classe social na América Latina. A reflexão que se impõem a partir dessa posição de Florestan Fernandes é a de que análises conceituais precisam ser elaboradas a partir de uma análise contextual, nesse caso, uma análise contextual estrutural e histórica do processo de modernização e capitalismo nas sociedades latino-americanas, que integrou ou juntou dinamismos socioeconômicos distintos.

  O texto segue prosseguindo com o destrinchar das classes sociais no Brasil e América Latina. Sua tese principal, apresentada na seminal obra “Revolução Burguesa no Brasil”, que é neste texto retomada, implica em reconhecer que houve um processo de acomodação da modernidade e do capitalismo às formas autocráticas características da dimensão privada da vida pública, marca do Brasil colonial[1] e que se arrasta pela história. Essa acomodação se fez pela tentativa de manutenção de privilégios frente a modernização da sociedade e economia, e frente ao aumento progressivo do poder público, sobretudo federal. Fernandes (1911, 1981) coloca que um conjunto de relações (alianças, entradas, acordos) foram estabelecidas entre a elite e a dimensão pública o que implicou na manutenção dos privilégios dessas elites frente ao processo concorrencial do capitalismo e aos processos de estatização (modernização da sociedade). O foco por ele colocado: “O que é importante, nesse quadro geral, é a tendência predominante a preservar o superprivilegiamento de classe, apesar (ou através) da constante reformulação constitucional das relações autocráticas e autoritárias” (FERNANDES, 1977, p. 232).

  Florestan chega ao final do texto, inclusive, apresentando possibilidades de saídas, e ao mesmo tempo os possíveis problemas na resolução dessa grande questão. Três vias se colocam: (I) aumentar o nível de integração e dependência com as economias e países hegemônicos; (II) promover a disseminação de privilégios, aumento da renda das classes baixas e ações pontuais de distribuição de capitais;(III) revolução contra a ordem, explosão popular. Ele critica e apresenta problemas com as vias I e II, restando-lhe afirmar que a terceira via teria a fulcral vantagem de “ruptura total com os fatores e efeitos da dependência e do subdesenvolvimento, sob o capitalismo e a sociedade de classes” (FERNANDES, 1977, p. 229). Ele conclui “é a única via efetivamente capaz de superar a dependência e o subdesenvolvimento, convertendo-os em ‘desafio histórico’ e em fonte de solidariedade humana na luta pela modernização autônoma e por uma ordem social igualitária” (FERNANDES, 1977, p. 229). Obviamente, diante da densidade e larga produção de Florestan, outras interpretações possíveis de resolução do problema da burguesia autocrática e do superprivilegiamento podem ser gestadas e por fim praticadas, o que mantém o debate em aberto. Ademais, a ruptura total, utopicamente orientada, não guarda precedentes históricos para esse tipo na história brasileira e/ou latino-americana.

  O pensamento de Florestan apresenta-se como extremamente fecundo e sua análise científica e não-ensaísta garante que suas percepções e análises permaneçam válidas ao debate atual. As contribuições científicas dele, bem como sua participação política, reverberam na forma de compreensão do Brasil atual.


Notas

[1] Conferir os potentados apresentados por Oliveira Viana e a reflexão de Victor Nunes Leal sobre a municipalidade sob domínio familiar e posteriormente sob os coronéis no capítulo 2 da obra Coronelismo, Enxada e Voto.


Referências

FERNANDES, Florestan. Problemas de conceituação das classes sociais na América Latina. In.: ZETENO, Raúl. As classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.


Como citar este texto:

SANTOS, Harlon Romariz Rabelo. Conceituação de classes sociais na América Latina em Florestan Fernandes. Blog Observare: 2020. Disponível em: https://observare.slg.br/classes-sociais-na-america-latina-em-florestan-fernandes/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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