Entre ordem, dominação e habitus; entre ambivalência e lutas simbólicas: diálogos possíveis entre Zygmunt Bauman e Pierre Bourdieu

Proposta do texto

            Este texto, de caráter livre, se situa na intenção de se estabelecer um diálogo teórico entre as considerações sobre a modernidade em Bauman e a teoria dos capitais e teoria do habitus em Bourdieu. O texto apresenta um quadro geral das perspectivas dos dois autores e propõem possíveis diálogos, intercalando as duas posições teóricas no sentido de melhor compreender os processos macros de ordem e ambivalência da modernidade, pautados por Bauman, e no qual Bourdieu pode muito contribuir numa perspectiva sociológica da ação.

Modernidade e ambivalência

          Bauman, entre várias fases de sua produção intelectual, apresenta inúmeras reflexões sobre o conceito macro de modernidade. Dentre suas diversas obras que refletem sobre esse peculiar momento histórico, encontra-se uma de envergadura referencial chamada Modernidade e Ambivalência. Modernity and Ambivalence foi publicada originalmente em inglês pela Polity Press de Cambridge, em 1995, cinco anos antes da laureada obra Modernidade Líquida.

            Nessa obra Bauman apresenta um quadro de análise da modernidade que centraliza a tensão entre ordem e ambivalência como status primordial da modernidade, sendo tais assumidas como categorias analíticas que ajudariam os interpretes sociais e os historiadores a entender os movimentos e acontecimentos modernos. Para a construção do argumento, Bauman (1999) parte de uma conceituação da noção de ambivalência, tomando como mote uma categorização linguística. Para delinear o conceito de ambivalência – que será central no texto – ele considera:

A situação torna-se ambivalente quando os instrumentos linguísticos de estruturação se mostram inadequados; ou a situação não pertence a qualquer das classes linguisticamente discriminadas ou recai em várias classes ao mesmo tempo. Nenhum dos padrões aprendidos poderia ser adequado numa situação ambivalente – ou mais de um padrão poderia ser aplicado; seja qual for o caso, o resultado é uma sensação de indecisão, de irresolução e, portanto, de perda de controle. As consequências da ação se tornam imprevisíveis, enquanto o acaso, de que supostamente nos livramos com o esforço estruturador, parece empreender um retorno indesejado. A função nomeadora/classificadora da linguagem tem, de modo ostensivo, a prevenção da ambivalência como seu propósito (BAUMAN, 1999, p. 10).

            Ao considerar a ambivalência na linguagem, ele a percebe como resultado da tarefa de classificar, da tentativa contínua e sistemática de incutir ordem aos processos, no caso, em âmbito linguístico. É por esse motivo que Bauman (1999, p. 11) considera que a “ambivalência é um subproduto de classificação” e, por conseguinte, a “luta contra a ambivalência, é, portanto, tanto, autodestrutiva quanto autopropulsora”. A partir dessa metáfora com a linguagem Bauman (1999) salta para analisar a modernidade como um palco de tensões entre as tentativas de imposição da ordem, tentativas essas criando ambivalências – ou não-ordem – e por fim, um ciclo de mais ordem e ambivalência. Ele assenta:

O conceito de ordem apareceu na consciência apenas simultaneamente ao problema da ordem, da ordem como questão de projeto e ação, a ordem como obsessão. […] A luta pela ordem […] é a luta da determinação contra a ambuiguidade, da precisão semântica contra a ambivalência, da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a confusão. […] O outro da ordem não é uma outra ordem: sua única alternativa é o caos. O outro da ordem é o miasma do indeterminado e do imprevisível. O outro é a incerteza, essa fonte de arquétipo do medo (BAUMAN, 1999, grifo do autor).

            Ele caracteriza a modernidade, que diferentemente dos períodos pré-modernos, como a que luta pela ordem, que busca o planejamento como vias de realização. Em outra obra, Legisladores e Intérpretes, Bauman (2010) considera que os legisladores[1] possuíam uma espécie de projeto humano, quase como uma busca por perfeição, luta para o alcance de uma espécie de ponto final da história/evolução humana. A crença na possibilidade de uma sociedade perfeita movia homens e mulheres na construção de uma sociedade pura, ordeira, homogênea, perfeita, regular e saudável.

            Bauman localiza as vias de realização desse projeto moderno a partir de duas grandes frentes de ação humana, a saber, a ciência e a política. Ao longo do primeiro capítulo Bauman (1999) faz um progressivo e peculiar levantamento histórico, fazendo análise de discurso que revelam tanto cientistas como políticos comprometidos com esse projeto moderno de ordem. Ele demonstra como o Estado possuía uma ânsia por organizar, sendo caracterizado como um Estado Jardineiro que precisa cuidar do jardim, sendo necessário, se assim for, retirar e queimar as ervas-daninhas. No âmbito científico, Bauman (1999) lembra dos discursos sobre a eugenia, sobre as engenharias sociais e darwinismo social. O espírito moderno possuía uma forma de se posicionar no mundo, rejeitando todas as outras formas de vida e projeto que destoasse do projeto moderno. Tal projeto não se apresentava como uma das alternativas, mas como a alternativa final e absoluta, pretensamente ancorada na objetividade científica reinante à época. Esse espírito moderno ou esse projeto, avançou como uma draga sobre as diversas culturas e formas de existir. Bauman cita H.G. Wells, um escritor, liberal-socialista inglês de grande influência da época que afirmou:

“A população deveria ser homogênea; quando existem duas ou mais culturas no mesmo lugar, provavelmente ou ficarão furiosamente constrangidas ou vão se adulterar. […] Um espírito de excessiva tolerância deve ser reprovado” (WELLS apud BAUMAN, 1999, p. 43).

            Bauman analisa a ambivalência surgindo das contradições internas dos processos de ordem, ordem que se tentava estabelecer em âmbito humano, nos corpos dos indivíduos, nas suas relações e produções culturais. O Estado Jardineiro e a ciência instrumental-burocrática buscavam tanto subordinar a natureza aos ditames humanos, quanto os outros humanos diferentes daquele espírito moderno. É aqui que Bauman (1999) faz precisa lembranças dos judeus e ciganos, bem como de outros povos que destoavam do ser moderno. No caso dos judeus, um povo de diáspora, sem um Estado-nação estabelecido. O ser judeu ou cigano provocava ambivalência pelo simples fato de existir. É nesse sentido que Bauman (1999) considera que o holocausto não fora criação exclusiva dos alemães. Para ele, existia um espírito moderno que fora determinante para tal ocorrido escandaloso. Em um diálogo com Keith Tester, num momento sobre o contexto do holocausto, Bauman (2011, p. 99, grifo do autor) afirmou:

É uma invenção moderna o fato de que, para certas categorias de seres humanos, simplesmente não há lugar na “boa sociedade” que está para ser construída, não por suas más ações, mas pela incapacidade de agir de maneira “correta”. Uma variedade moderna de criminosos, produtos colaterais das ambições regulatórias, consiste em categorias de pessoas cujo crime foi terem sido acusadas. Podemos rir de algumas acusações, coletar provas mostrando que outras não tem fundamentos, inocentar alguns acusados e ter pena de outros. Mas a prioridade do projeto do jardim em relação aos “jardins realmente existentes”; a ideia de que alguns tipos de seres humanos podem ter “natureza daninha” e tendem a assim permanecer; que certas espécies de Leden são unwertes; que os seres marcados por certos traços devem ser, pelo bem do projeto, removidos ou, melhor, impedidos de nascer; isso tudo está profundamente enraizado na mente moderna e aflora sem cessar nos avatares sempre novos.

                O holocausto foi uma espécie de coroação da ordem moderna que acabou por aflorar na Alemanha[2], local onde as condições estatais e sociais foram propícias a tal. Bauman (1999) mostra como a ordem da Alemanha nazista fora elogiada por intelectuais ingleses; apresenta como cientistas de várias nacionalidades enxergavam a eugenia social como algo positivo, ou como a centralidade e organização do Estado Alemão era demasiadamente elogiado pelos adeptos do projeto ordenador moderno, pelos adeptos do Estado Jardineiro, presentes em todo o mundo moderno da época. No entanto, como o próprio Bauman (1999) considera, inúmeros discursos contra, movimentos e resistências sempre estiveram presentes. A tentativa de ordenamento da vida social na modernidade sempre enfrentou a ambivalência provocada por essa mesma tentativa. As culturas, as pessoas, os doentes e os outros sempre estiveram nas teias de tensão da vida moderna entre ordem e ambivalência. Mesmo que o Estado tenha agido no sentido de integrar o outro (eliminando a diferença) ou de expulsá-lo (eliminar o diferente), o outro continuou presente como o diferente que é, provocando ambivalência e acirrando o conflito social, político e até mesmo geopolítico. A homogeneização da sociedade foi assim uma tentativa tensa, conflituosa e por fim, falida em seus propósitos últimos.

Localizando agentes e ações

            Bauman (1999) é muito assertivo em analisar esse status de tensão entre ordem e ambivalência não apenas no sentido do discurso, nos campos das ideias, mas localizando agentes e ações sociais específicas, que deram o tom da era moderna. Na obra em questão, como em outros textos, Bauman centraliza a análise nas ações dos cientistas, políticos, formadores de opinião pública entre outros, bem como outros do outro lado da tensão, como no caso dos judeus e ciganos marginalizados, entre outros.

            No entanto, pelo caráter ensaísta do texto baumaniano, fica a necessidade de uma análise mais operacional e metodológica de como se deu – ou se dá – essa ambivalência. A pergunta que se faz é: como analisar o estabelecimento da ordem e a inevitabilidade da ambivalência a partir de uma operacionalidade típica das teorias sociológicas? Ou mais especificamente: como entender a busca pela ordem e a constância da ambivalência como ações sociais? Como dar operacionalidade científica para conceitos macros como ordem e ambivalência, que se referência em outro conceito tão largo quanto, que é o conceito de modernidade?

            A estrutura do pensamento de Bauman (1999) e a sua caracterização analítica permite o encaixe de análises focadas na ação, assim é possível pensar a ordem e a ambivalência dentro de um escopo analítico da ação de grupos e pessoas, dentro de um contexto de lutas simbólicas, dentro do contexto da dominação social de determinadas formas de ser e agir social. Ou seja, é possível perceber a tentativa de ordem como resultado da dominação simbólica imposta por habitus dominantes e a ambivalência como a contraordem, como resultado das tensões e lutas no estabelecimento desse habitus. Assim, é possível encontrar caminhos para a relação dessa obra de Bauman com a teoria dos capitais e do habitus de Pierre Bourdieu (1983, 2005, 2011a, 2011b), e ainda, relação com as reflexões de outros sociólogos da ação e da prática.

Capitais simbólicos, habitus e lutas na modernidade

            Bourdieu é conhecido pela sua teoria que integra as principais contribuições da sociologia clássica e um modelo teórico-metodológico que valoriza uma análise empírica de fatores econômicos, sociais e simbólicos, dentro de um escopo único de análise que se dá pelo conceito de habitus. Assim, Bourdieu considera que existem capitais econômicos, sociais, culturais que determinam as ações dos indivíduos, constituindo assim o habitus. Esses capitais refletem a estrutura estabelecida na sociedade, mas que podem ser contraditos e que são alvos de lutas, lutas essas que buscam definir, em cada campo, como algo ou processo deve ser.

            É interessante notar que para Bourdieu (2005) existe um contínuo processo de lutas simbólicas, que acontecem num âmbito não facilmente perceptível ao olhar corriqueiro, uma vez que o poder simbólico é invisível. Esse caráter do poder simbólico ressalta o fato de que é um poder estruturante na sociedade, submerso, com capacidade de construção da realidade que emerge, no sentido específico de fornecer um senso, um sentido imediato do mundo.

Os “sistemas simbólicos” como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, “uma concepção homogênea do tempo, espaço, do número, da causa, que torna possível a concorrência entre as inteligências” (BOURDIEU, 2005, p. 9, grifo do autor)

      Esse sentido compartilhado entre os indivíduos cria certas homogeneidades, certa ordem social, estabilidade em torno de conteúdos simbólicos reinantes. Tal processo acaba por estruturar a sociedade, mas tais estruturas não podem ser naturalizadas, e sim percebidas num processo de lutas simbólicas entre indivíduos, grupos e classes.

      Assim, num exercício de extrapolação teórica, poderíamos pensar a modernidade como um grande campo de lutas pelo estabelecimento ‘daquilo que deveria ser’. Cientistas, políticos, e outros legisladores buscando a aplicação da ordem e do projeto, lutando simbolicamente – e com consequências materiais significantes. Assim, a tentativa de estabelecimento da ordem pode ser entendida aqui, como a ação mais ou menos coordenada de agentes tentando estabelecer o padrão, o projeto, o modelo a ser seguido. Instituindo as formas “corretas” e as condições que se tornaram os capitais simbólicos e culturais desejáveis. Bauman (1999) mostra que a busca pela ordem estava ‘mascarada’ em nome da saúde, do desenvolvimento, do bem-estar humano, do progresso, entre outros argumentos, muito desse discurso, capitaneado e desenvolvido no âmbito do Estado. Bourdieu (2005) fala dos especialistas da produção simbólica legítima, que seriam, em tentativa comparativa, os legisladores em Bauman (2010). Bourdieu fala desses especialistas no contexto do Estado, que é para ele um campo de atuação simbólica, e todo o campo é um “universo relativamente autônomo das relações específicas” (BOURDIEU, 2005, p. 65). Mesmo que o campo também seja influenciado por externalidades, como o campo político, por exemplo, é possível percebê-lo como um completo contexto de produção simbólica que pode ser levado a cabo por um grupo específico de indivíduos que são revestidos de poder por outros, no contexto da política em tempos modernos. É por isso que o Estado, um ente tão forte, ao se falar de modernidade, aparece com tanta frequência e força nas análises sociológicas sobre esse período, no caso específicos dos autores aqui chamados, aparece tanto em Bauman, como em Bourdieu.

O Estado e o campo político

Ancorada nessa discussão sobre o Estado provocada por Bauman, é possível estabelecer diálogos com as considerações de Bourdieu sobre o Estado e o campo político no contexto do poder simbólico. Bourdieu (2005) fala sobre a capacidade, ao nível do Estado, de produção simbólica aparelhada, institucionalizada, e de capital simbólico objetivado:

A delegação do capital simbólico pressupõe a objetivação desta espécie de capital em instituições permanentes, a sua materialização em “máquina” políticas, em postos e instrumentos de mobilização e a sua reprodução contínua por mecanismos e estratégias. Ela é própria de empreendimentos políticos já com muitos anos, que acumularam um importante capital político objetivado […] (BOURDIEU, 2005, p. 194).

Além disso, Bourdieu (2005) considera que a institucionalização de determinados capitais, em nível político e estatal, acaba por ser fonte de estruturação de habitus. Assim, fica considerada o aspecto singular das relações sociais ao nível do Estado e da capacidade desse nível de produção simbólico em ter certa autonomia produtiva. Capacidade de conduzir processos, de estruturar habitus, ou seja, de fornecer uma certa gama de sentidos imediatos que serão socialmente compartilhados. Uns cristalizados, outros desestimulados, conforme pretende demonstrar a seguinte figura (Figura I).

Figura 1 – Processo de objetivação e estímulo/desestímulo de habitus pelas instituições

Campos e habitus → capitais simbólicos → Instituições/aparelhos 
⇓⇓
Cristalizam determinados habitus e/ou desestimulam outros habitus

 

      Assim, é possível relacionar essa peculiaridade de produção simbólica ao nível do estado com a análise de forte atuação do Estado atribuída por Bauman (1999), metaforizado pelo Estado Jardineiro. No período da modernidade forte – período anterior ao que Bauman vai chamar de modernidade líquida – o poder dessas instituições/aparelhos de cristalizar habitus era latente, no caso, habitus de ordem e normalidades daqueles valores simbólicos à época valorizados. Em contrapartida, não-ordem, a ambivalência, a diferença estava para ser desestimulada, dominada e por fim, domesticada. No entanto, por haver tensões inerentes nesse jogo de lutas, a ambivalência vai se fazer presente ao longo de todo o empreendimento dessas instituições e aparelhos oficiais (a maioria estatais) da modernidade. O Estado, portanto, é falho e insuficiente na tentativa de uma condução social programada e artificializada.

      Nesse ponto, outra convergência com Bourdieu (2005) pode ser estabelecida: o fato do Estado não ter capacidade condutora também está relacionado ao seu caráter de disputa interna. O Estado, e o campo político são alvos de outras lutas simbólicas estabelecidas na sociedade, e por mais que seja possíveis conteúdos mais ou menos estáveis e grupos dominantes, o estado de tensão é permanente, a priori ao Estado e na sua atuação, ou seja, na sua composição/formação e ação. Bourdieu (2005, p. 164) considera:

O campo político, entendido ao mesmo tempo como campo de forças e como campo das lutas que tem em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento, não é um império: os efeitos das necessidades externas fazem-se sentir nele por intermédio sobretudo da relação que os mandantes, em consequência da sua distância diferencial em relação aos instrumentos de produção política, mantém com os seus mandatários e da relação que estes últimos, em consequência das suas atitudes, mantém com as suas organizações.

      E aqui a metáfora do jogo político é acionada, uma vez que “A intenção política só se constitui na relação com um estado de jogo político e, mais precisamente, do universo das técnicas de ação e de expressão que ele oferece em dado momento” (BOURDIEU, 2005, p. 165). Esse jogo é precedente e concomitante ao estado, acontece no seio social e influencia as ações políticas.

Para além do Estado e do campo político

            Esse aspecto do jogo político colocado por Bourdieu chama a atenção mais uma vez para se refletir em como as lutas simbólicas estão em turbilhão na sociedade, se fazendo e refazendo, afirmando e se reafirmando entre as diferentes classes e grupos dispostos no conflito. Ele considera:

As diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta quer diretamente, nos conflitos simbólicos da vida quotidiana, quer por procuração, por meio da luta travada pelos especialistas da produção simbólica (produtores a tempo inteiro) e na qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legitima (cf. Weber), quer dizer, do poder de impor – e mesmo de inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão – da realidade social (BOURDIEU, 2005, p. 11)

           Esse aspecto não isola o Estado de suas ações, ou seja, não isola as ações do Estado Jardineiro de suas ações controladoras e homogeneizadoras daquilo que estava presente na sociedade da época. Assim, tanto no nível do Estado, como, principalmente, no nível da sociedade, é que devem ser entendidas as tentativas por uma sociedade da ordem, ‘evoluída’, avançada, homogênea, eficiente, ‘saudável’, ordeira. Por mais que a linguagem de Bauman (1999) não pareça coincidir com a de Bourdieu, é possível pensar que tais tentativas estavam no contexto, de ação prática, de dispositivos de distinção. A ordem era contra o diferente, o discurso higiênico era contra o ‘louco’, o ‘avançado’ era na tentativa de distinção entre o eu moderno científico e outro subdesenvolvido atrasado. Assim, pode-se entender a ordem em Bauman (1999) como uma série de estabelecimentos simbólicos valorativos, que se impunham como conteúdos socialmente compartilhados e que criaram distinções entre o belo, bom e ordeiro em relação ao feio, mal e ambivalente. Tal processo de estabelecimento do diferente e da diferença, se deu tanto nos atos oficiais, mas principalmente no âmbito cultural e discursivo. É nesse âmbito que o estabelecimento da distinção é tão mais forte quanto imperceptível. Bourdieu (2005, p.11) considera que “a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subcultura) a definirem-se pela distância em relação à cultura dominante”. E é justamente nesse âmbito, da cultura, que acontece a domesticação do dominado (cf. Weber, relação senhor-escravo), por ser uma afronta não direta, mas entremeada na força do coletivo. É aqui que a distinção acontece com mais força e sutileza, sem localidades que possam ser afrontadas diretamente, onde acontece a legitimação da distinção.

Bourdieu (2011a) considera o habitus como história incorporada, em geral não percebida, apenas vivida pelos sujeitos. Bourdieu (2011a, 2011b) numa categorização do sujeito moderno lembra que tal possui a arte de estimar e a ação racional salientada e que tais características são adquiridas sob certas condições, ou seja, sob certos capitais ou disposições.

Em resumo, a arte de estimar e de perceber as probabilidades, a aptidão a antecipar o porvir por uma espécie de indução prática ou até mesmo jogar o possível contra o provável mediante um risco calculado, são algumas das disposições que não podem ser adquiridas senão sob certas condições, ou seja, sob certas condições sociais (BOURDIEU, 2011a, p. 105)

             Assim, sob as máscaras do desenvolvimento e do progresso foi ‘gestado’ um homem moderno, racional, que calcula probabilidades, tudo a partir de disposições sociais modernas que iam assim se constituindo em habitus gerais. Por fim, essa capacidade racional também possibilitou que novas estruturas sociais fossem surgindo – aliás, o habitus são estruturas estruturadas estruturantes – instituições essas que visavam um fim mais ou menos comum, um fim moderno, um fim ordeiro. O que se coloca é que esse conjunto de capitais simbólicos e culturais modernos permitiram um habitus de grupo. Uma forma comum – sobretudo europeia – de se posicionar no mundo e de estabelecer uma forma de ser e estar no jogo social. A modernidade, ou melhor, a tentativa de estabelecimento da ordem na modernidade pode ser entendida como uma excitação de um habitus de grupo em prol de uma forma de ser e estar no mundo. Bourdieu (2011a) fala da possibilidade de habitus de classe, onde é possível perceber conjuntos de ações comuns de indivíduos com histórias semelhantes. Onde “[…] cada sistema de disposições individual é uma variante estrutural dos outros, no qual se exprime a singularidade da posição no interior da classe e da trajetória” (BOURDIEU, 2011a, p. 100). Ele considera o habitus como uma lei imanente (lex insita) “inscritos nos corpos por histórias idênticas” (BOURDIEU, 2011a, p. 98).

            Por sua vez, a ambivalência seria o resultado do não-imobilismo presente na sociedade. A ambivalência seria, nessa leitura superficial, o resultado das lutas simbólicas que se estabelecem pela determinação do ser e estar na vida social, pela determinação daquilo que será valorizado na sociedade, pela determinação do que será um capital, um valor. A desordem é resultado do conflito entre atores que querem existir ao seu modo. Dos judeus que agem pela vida e se mobilizam como grupo, dos colonizados que argumentam e agem em prol da liberdade econômica e política, enfim, do diferente que se coloca como tal e que questiona a ordem, as estruturas sociais. A simples insistência e presença do diferente já contraria a ordem. Esse conflito se dará em todos os campos da vida social¸ seja no científico, seja no político, seja no econômico ou mesmo no campo cultural.

Considerações outras: radicalização da ambivalência

            As reflexões sobre a modernidade líquida (BAUMAN, 2001) podem ser entendidas como um novo momento das lutas simbólicas e materiais que se estabelecem na contemporaneidade. A liquidez talvez seja efeito do acirramento do conflito, da pluralidade de habitus, e capitais se estabelecendo e disputando pelo domínio. Bauman (2001) fala da modernidade líquida como momentos de desencaixes sem novos encaixes. Se pensarmos em termos de conflito, tais encaixes se tornariam impossíveis num momento de ainda disputa ou de radicalização das disputas. As impossibilidades do retorno às tentativas de homogeneização abrem espaço para um palco de conflitos e tensões ainda mais radicais que aqueles da ambivalência na modernidade da ordem. Se entendermos a ambivalência como resultado de ações de conflito, na modernidade líquida, a ambivalência seria parte do estar contemporâneo e não mais como um contra poder, e sim um estar permanente de reconhecimento da impossibilidade de novas homogeneidades, de novas ordens, de novas dominações, de novas estruturas gerais, de radicalização da luta.

            Weber (1999) percebe a dominação como uma relação social, estabelecida entre indivíduos, onde alguém, seja qual for o motivo, consegue obediência do outro. Esse conceito clássico de dominação abre para pensar que em tempos contemporâneos a dominação e o poder ainda são fortes e presentes, obediência ainda existe como passividade. No entanto, as manifestações de dominação não se dão mais de forma coesa, ou conciliatória – pelo menos não de forma geral. A dominação acontece, o poder existe, mas sem nenhum projeto ou valor comum que unifique indivíduos em prol de um espírito, de um projeto ou ação final. Toda fonte de poder é contestada, a ordem e a lei não são mais coros unívocos, a fluidez se estabelece e as relações sociais se tornam líquidas, amorfas, como pretende convencer Bauman (2001). Se estabelece um eterno desencaixe entre poder, ordem, obediência imposta, mas não aceita, sem mais o status da coesão e concertação, sem projeto, sem espírito. Como se os indivíduos das sociedades contemporâneas estivessem potencialmente mais diferenciados, afastando-se mais e mais do status comunitário e de relações sociais mecânicas das sociedades tradicionais, descritas por Durkheim.

            Enfim, diálogos entre Bauman e Bourdieu remetem a um desafio de abstração e busca por pontos convergentes. O mais importante é pensar como uma constelação de conceitos macros e gerais, tais como modernidade, ordem, ambivalência, podem fazer pontes de entendimento com a realidade junto a um sistema organizado de conceitos mais empíricos e práticos como habitus, campo¸ poder simbólico, lutas simbólicas, entre outros. O presente texto, portanto, buscou explorar algumas dessas pontes, de forma inicial e propositiva, insistindo na tentativa de diálogos entre autores de perspectivas sociológicas diferentes e de contexto teórico-metodológico diverso.

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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. São Paulo: Zahar, 1999.

______. Modernidade líquida. São Paulo: Zahar, 2001.

______.  Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. São Paulo: Zahar, 2010.

______. Bauman sobre Bauman: diálogos com Keith Tester. São Paulo: Zahar, 2011.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In.: ORTIZ (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

______. O poder simbólico. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

______. Senso prático. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011a.

______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 11. ed. Campinas, SP: Papirus, 2011b.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF: Editora UNB, 1999. Volume II.

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NOTAS

[1] Nessa obra citada Bauman (2010) faz uma diferença entre as pretensões e tipos de trabalho intelectual na modernidade e na pós-modernidade (modernidade líquida). Na modernidade os intelectuais atuavam mais como – metaforicamente – legisladores, classificando, recomendando, ordenando; em contraposição, nos tempos mais contemporâneos, os intelectuais atuariam mais como intérpretes, no âmbito da compreensão e discurso sem pretensão de verdade.

[2] Centenas de outras situações de estabelecimento da ordem moderna, de prejuízo da cultura e do indivíduo aconteceram, como os processos colonizadores, entre outros. Uns de eliminação, como no caso do holocausto na Alemanha, outros de assimilação violenta. Entre esses casos de assimilação cultural violenta tem-se o caso das crianças da etnia inuit. Crianças foram arrancadas de seus pais e culturas para passarem por um processo de aculturação e assimilação da cultura dinamarquesa. Como era de se esperar, tal experimento social foi um fracasso, marcando negativamente a vida dessas crianças, que quando adultas, ficaram deslocadas e muitas marginalizadas. Para saber mais, use o link: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/06/150611_groenlandia_dinamarca_experimento_rm>. Acesso em 15 jul. 2015.

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COMO CITAR ESTE TEXTO:

SANTOS, Harlon. Entre ordem, dominação e habitus; entre ambivalência e lutas simbólicas: diálogos possíveis entre Zygmunt Bauman e Pierre Bourdieu. [S.l]: Blog Observare, 2017. Disponível em: < https://observare.slg.br/2017/01/09/zygmunt-bauman-e-pierre-bourdieu  >. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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