Antes da resposta, duas considerações. Primeiro que a noção aqui de classe é aquela mais complexa possível, ou seja, para além do modelo materialista de Marx. Segundo, parte-se aqui do paradigma das ciências humanas de que a sociedade é uma realidade para além do mundo biológico, ou como lembra Émile Durkheim, que a sociedade é um novo objeto, uma nova natureza. A reposta é, do ponto de vista lógico e idealista, sim. Porém, é algo extremamente improvável, visto padrões históricos e estruturas sociais.
A baixa probabilidade de uma sociedade sem classes pode ser justificada por pelo menos dois argumentos: um empírico e outro antropológico-sociológico. Não há registro, nesses mais de dez mil anos de história humana a nós acessível pela escrita, de qualquer exemplo de sociedade ou agrupamento humano que não possuísse algum nível de diferenciação entre seus indivíduos ou sujeitos. Mesmo os agrupamentos autóctones/tradicionais, como os indígenas, por exemplo, possuem certas diferenciações internas, seja divisão sexual, por idade, ou mesmo papéis referenciados pela atividade material ainda que pouco definidos, mas não totalmente homogêneos. Além disso, numa mesma região geográfica, é possível perceber uma diversidade de agrupamentos e construções simbólicas que os diferenciam entre tribos. Certas tensões, disputas, conflitos e guerras, mesmo que rituais, indicam a possibilidade de diferenciações ao longo do espaço e tempo social.
O outro argumento é possível de ser percebido a partir das considerações do antropólogo francês Louis Dumont. Ao pesquisar o fechado sistema de casta indiano, ele analisa o papel do retirante/renunciante que mesmo imerso em uma forte socialização consegue reinterpretar valores. São “indivíduos-fora-do-mundo que relativizam a vida no mundo e o renunciam” (DUMONT, 2000, p. 38-39). Assim, diante da complexidade humana, haverá sempre a possibilidade da figura do retirante, e, portanto, de diferenciações, de rompimento da ordem e, por conseguinte do conflito. Max Weber também lembra que são as ideias que legitimam as ações sociais, e, portanto, as relações de poder numa sociedade, sendo assim, tanto quanto for possível o número de ideias e de legitimações, tanto será possível teoricamente o número de formas de sociedade e lógicas de poder. Um caminho sem fim.
O que a experiência empírica mostra e o que determinadas explicações sociológicas e antropológicas apontam, é que uma sociedade, sobretudo demograficamente intensa, persistente historicamente e com grupos habitando simultaneamente diferentes espaços naturais, dificilmente manteria um grau de homogeneidade entre seus indivíduos que impossibilitasse a individuação, a diferenciação, a divisão, a diversidade de interesses e o conflito. As utopias comunistas e/ou comunitaristas talvez não convençam justamente pelo fato de que se sustentam apenas nessa possibilidade lógica, nessa imaginação utópica que seria análoga a ideia religiosa de um espaço celestial. Tal percepção realista não nos imobiliza ante o imperativo que nos move pela construção de uma sociedade melhor, mais justa e mais humanamente potente, não obstante, ajuda a descartar a ideia de perfeição e iluminação, que é uma invenção provavelmente mítico-religiosa. Essa consciência realista é o que permite, ao cabo, maiores (e reais) avanços sociais.
Referência
DUMONT, LOUIS. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: RACCO, 2000.
Como citar este texto:
SANTOS, Harlon Romariz Rabelo. Uma sociedade sem classes é possível? Blog Observare: 2017. Disponível em: https://observare.slg.br/uma-sociedade-sem-classes-e-possivel/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.