Representações coletivas, simbolismo e sistema de ideias em As Formas Elementares da Vida Religiosa de Émile Durkheim

por Nilton de Almeida Nascimento

      É acreditando inaugurar um modo de análise estritamente positivista[1] das ‘coisas sociais’ que Émile Durkheim empreende seu esforço intelectual por alçar a condição de objeto científico outra natureza de regularidades que não as do mundo natural. No célebre As formas elementares da vida religiosa (1996) esta pretensão está clara na referência direta que este autor faz as lições de Descartes, quando opta por tratar o totemismo como o primeiro, portanto mais simples, elo de uma cadeia que, esquadrinhada pelo método científico, forneceria explicações sobre um dos elementos de maior persistência na realização humana: a religião. A seguir discorreremos sobre o que se depreende da relação entre representações coletivas, símbolos e sistemas de ideais no movimento conceitual de análise durkheimiano.

      Compreender o fenômeno religioso em sua contemporaneidade implicava, para Durkheim, ser capaz de acessar sua manifestação mais pura, simples. Só os cultos tribais, em específico o totemismo, preservariam explícitos os elementos essenciais da crença. Não que estes houvessem sido extirpados da religiosidade moderna. Acontece que este fundador da sociologia não rompia de todo, em suas concepções teóricas, com o evolucionismo ainda imperante em sua época, o que o levava a enxergar na sociedade primitiva a condição germinal, cerceada pelo “indispensável” o “essencial”, da humanidade. Assim, que melhor laboratório haveria para encontrar a natureza da religião? Uma miscelânea complexa de ritos e discursos “elaborados e desnaturados pela reflexão erudita” (a civilização moderna), ou o universo do essencial e imperativo “onde os fatos são mais simples” e “as relações entre os fatos são também mais evidentes” (a sociedade primitiva)? (DURKHEIM, 1996, p. XIII)

      Da análise do totemismo, Durkheim entende que a essência do fenômeno religioso, o seu objeto máximo de culto, não é outro senão a própria sociedade. A religião surge, na perspectiva deste autor, como expressão máxima da exterioridade de algo que se põe acima da consciência individual. Não uma entidade divina. Mas algo tão onipresentes quanto. A consciência coletiva. Esta, afirma Durkheim, existe e impera não apenas pela coerção que pode exercer, mas principalmente por incutir nos espíritos (consciências) individuais representações de si aceitas pela opinião (DURKHEIM, 1996, p. 213).

      Com representações coletivas, Durkheim quer referir, de acordo com Marcio de Oliveira (2012), ao dado objetivo – pedra, aranha, fibras de tecido branco – pensado e interpretado a partir de um material cognitivo compartilhado. A pedra se torna assim um projétil, um altar. A aranha, o totem do clã. Um tecido retangular branco passa a simbolizar a rendição. Tudo isso a partir da articulação das representações individuais em torno do referencial comum fornecido pelas representações coletivas. Só estas ultimas, na perspectiva durkheimiana, forneceriam segurança suficiente para impelir os indivíduos a ação recíproca, ordenada. A representação coletiva pode ser pensada então como um fio que interliga as ações pessoais por meio da significação compartilhada de determinados símbolos.

      E aqui cabe pontuar. A representação coletiva, que cria o símbolo e sua significação, não deve a potência que tem a nada relacionado aos caracteres naturais da coisa; “Com o sensível, não se pode produzir senão o sensível”, afirma Durkheim (1996, p. 233). Com isso, Durkheim argumenta que o sentimento de elevação e reverencia em face do sagrado, que ele chega a chamar de “delírio bem-fundamentado” (DURKHEIM, 1996, p. 235), é fruto da efervescência da reunião de indivíduos. Efervescência inconcebível nas atividades cotidianas, o que tornava-as, por contraste, profanas. Cabendo ao símbolo manter perene nas mentes os sentimentos criados pelos ritos e festas. E aí está mais uma das conclusões que o autor dAs Formas Elementares chega: a divisão, operada pela religião entre o sagrado e profano, como representativa da qualidade mais cara a sociedade, que é de fornecer aos indivíduos elementos para organizar o real. Mas antes de se deter nesse tópico, cabe explorar ainda a importância dos símbolos.

      Novamente. Mesmo que os sentidos nada sugerissem aos homens que pudesse coloca-los em relação, p. ex., com a cacatua-branca ou a cacatua-negra, o primitivo, ainda assim, se impunha interdições quanto a tocar ou comer seu animal totêmico, caracterizava-se como esse animal. Isso porque, segundo Durkheim, a cacatua-branca ou negra era tomada por símbolo que punha em relação as representações que os indivíduos faziam da pertença que sentiam para com seu grupo. As representações individuais convergiam pelo canal da representação coletiva que se fazia das aves e dos homens. Para exemplificar, retomemos o nosso exemplo da bandeira branca que simbolizaria a rendição. Uma fibra de tecido nessa coloração, a priori, nada suscitaria em dois grupos rivais em batalha que pudesse faze-los parar. Porém, tomada como símbolo, concita os indivíduos a reflexão sobre o que ela afinal representa. Durkheim (1996) nos mostra que uma das características principais do símbolo é a capacidade de transferir sentimentos. Materializar abstrações. Nas tribos australianas, o símbolo totêmico conclama a solidariedade. Em nosso exemplo, que caractere sensível exprimiria de imediato uma abstração como a rendição? Nenhum. Só a representação coletiva que se faz do símbolo seria capaz de estabelecer as formas de agir diante dele.

      Tomando em conta as conclusões que chega sobre a religião e sua capacidade ao mesmo tempo canalizadora e germinal dos sentimentos individuais, Durkheim, em parceria com seu sobrinho Marcel Mauss, vai além. Em ensaio anterior as Formas Elementares, intitulado Algumas formas primitivas de classificação (2001), estes intelectuais franceses discorrem a respeito de como a sociedade, caracterizada de religião, é que fornece aos indivíduos as categorias de pensamento das quais estes dispõem para perceber a realidade. Alto e baixo, direita e esquerda, belo e feio, presente e passado, “isto relaciona-se aquilo” e etc. Ferramentas do pensamento forjadas historicamente que nos seriam incutidas pela educação, de acordo com Durkheim e Mauss. Dizem mais, classificar é hierarquizar. Dividir em classes e estabelecer relações entre elas. E nada disso nos seria natural, mas sim naturalizado. Não pomo-nos conscientes, a cada frase que elaboramos para designar a relação entre um elemento e outro da natureza, da significação e origem unívoca do que dizemos. Para estes autores, a forma de classificar o mundo que os homens possuem, uma vez educados na sociedade em que nasceram, cria raízes “extralógicas”, inconscientes. Tirando suas conclusões a partir do estudo da religião primitiva, os mesmos dizem que, para os ditos primitivos, a forma de classificar envolve o estabelecimento de “afinidades sentimentais”. “As coisas”, continuam eles, “são antes de tudo sagradas ou profanas, puras ou impuras, amigas ou inimigas, favoráveis ou desfavoráveis”; sendo a forma como elas afetam a “sensibilidade social” o critério de seu ordenamento (MAUSS; DURKHEIM, 2001, p. 454).

      É quando diz que “nossa própria representação do mundo exterior não passa de um tecido de alucinações”, que, em nosso entendimento, Durkheim deixa patente a relação entre representações coletivas, símbolos e sistemas de ideias. Durkheim chama de alucinações as características que a realidade ganha por meio das representações coletivas. É o dizer, da sociedade, sobre as coisas, mais do que as próprias coisas dizem. Um dizer que ressoaria tão mais efetivamente quando materializado em símbolos. Estes indicam posições, estabelecem limites, põem em movimento, criam canais de comunicação propiciando o entendimento e o intercâmbio de ideias entre os indivíduos. Conclusões estas de Durkheim, que ensejam, entre tantas outras reflexões, a partir do último capítulo dAs Formas Elementares da Vida Religiosa, o início de uma sociologia do conhecimento que vê na sociedade a fonte do pensamento lógico.

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REFERÊNCIAS

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo : Martins Fontes, 1996.

MAUUS, Marcel; DURKHEIM, Émile. Algumas formas primitivas de classificação: uma contribuição ao estudo das representações coletivas. In: Ensaios de sociologia. São Paulo : Editora Perspectiva, 2001. p. 399-455.

NISBET, Robert. A sociologia como uma forma de arte. Tradução: Sylvia Gemignani Garcia, 2000.

OLIVEIRA, M. De. O conceito de representações coletivas: uma trajetória da Divisão do Trabalho às Formas Elementares. Debates do NER, n. 22, p. 67–94, 2012. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/debatesdoner/article/viewFile/30352/23579>.

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NOTAS

[1] Ambição metodológica ingênua, que, hoje, entendemos, não corresponde ao alcance heurístico das conclusões de sua pesquisa. Ver Robert A. Nisbet (2000) sobre as implicações epistemológicas da tensão entre as proposições metodológicas “pregadas” pelos pais fundadores da sociologia e a dimensão supra-empírica, intuitiva, criativa, dos efetivos resultados de suas reflexões.

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COMO CITAR ESTE TEXTO:

NASCIMENTO, Nilton. Representações coletivas, simbolismo e sistema de ideias em As Formas Elementares da Vida Religiosa de Émile Durkheim. [S.l]: Blog Observare, 2016. Disponível em: < https://observare.slg.br/2016/11/29/representacoes-coletivas-simbolismo-e-sistema-de-ideias-em-as-formas-elementares-da-vida-religiosa >. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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