Percursos iniciais da Antropologia Brasileira

por Harlon Romariz

         A antropologia brasileira se caracterizou como uma disciplina a partir da produção e iniciativa de alguns antropólogos e exploradores – muitos desses estrangeiros – que adentram os rincões e matas brasileiras em busca do outro exótico. Roberto Cardoso de Oliveira (1988) chama atenção para o caráter explorador, individualista, etnológico, nativista e não institucionalizado desse período que chama de heroico.

O processo de institucionalização acadêmica da antropologia brasileira

         Após esse período, a antropologia vai aos poucos ganhando forma e se institucionalizando, tendo como grande marco a década de 1960, quando a disciplina encontra o ambiente onde se fincará e crescerá de forma singular até os dias atuais: a universidade brasileira, em especial os programas de pós-graduação, deixando de ser uma disciplina de livre-atiradores (CORRÊA, 1995).

         Mariza Corrêa (1995) demonstra que a partir da década de sessenta a antropologia brasileira ganha um novo ciclo de produção e expansão. Em especial, o ano de 1968 marca o início de uma antropologia institucionalizada, abrigada em programas de pós-graduação que fortaleceram e agregaram inúmeros antropólogos e antropólogas de diversas parte do globo e darão as bases para a primeira grande leva de novos antropólogos brasileiros. Corrêa (1995) situa a análise entre 1960 e 1980 e prioriza sua abordagem em torno do (I) Programas de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, criado em 1968; da remodelação do Programa na USP (1970), da criação do mestrado em antropologia nas recém criadas universidades UNICAMP (1971) e Universidade de Brasília (1972).

         O início da institucionalização acadêmica da antropologia brasileira é marcado por questões geográficas, por uma forte demanda por professores estrangeiros, por um ajuste ideológico à situação política brasileira e à uma necessidade de conhecer o outro brasileiro: os índios, negros e as populações oprimidas (CORRÊA, 1995). Além de um forte sentimento nacionalista que marca a tentativa de coesão social empreendida pelos militares no governo.

         A antropologia acadêmica lembrada por Corrêa (1995), começa a se abrigar em instituições do sudeste brasileiro e em 1972 chega a Brasília. Apesar de várias universidades já terem sido fundadas antes de 1960 em várias regiões do Brasil, e de existirem institutos com pesquisa antropológica, como, por exemplo, o Museu Paraense Emílio Goeldi e o Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (INSTITUTO, 2014), é justamente no sudeste que vai se concentrar a maior parte da produção e projetos de pesquisa em antropologia, através dos programas de pós-graduação dessas quatro universidades supracitadas (CORRÊA, 1995).

         Corrêa (1995) demonstra como essa institucionalização acadêmica centrada no sudeste teve a participação de inúmeros professores e antropólogos renomados, tanto por docentes permanentes, como por pesquisadores visitantes entre esses Lévi-Strauss, Radcliffe Brow, C. Wagley, Roger Bastide, entre outros. Entre os professores que permaneceram – pelo menos por maior tempo – tem-se o destaque para o inglês David Maybury-Lewis, o professor Emilio Willems, Antonio Arantes, Peter Fry, Verena Stolcke entre muitos outros. Essa múltipla influência internacional talvez tenha dado um caráter mais diversificado e plural à antropologia feita no Brasil (CORRÊA, 1995; OLIVEIRA, 1988), não podendo ser enquadrada dentro das escolas antropológicas internacionais mais definidas (OLIVEIRA, 1988).

         A institucionalização da antropologia brasileira permite a criação de uma linguagem e conceitos próprios (CORRÊA, 1995) e permiti que se expanda as análises sobre os grupos que até então perfaziam a grande parte dos estudos iniciais: as populações indígenas e tradicionais. O fato de Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e Roberto DaMatta terem forte vínculo teórico com a etnologia e de terem vínculos – sobretudo políticos – com as questões indígenas (RIBEIRO, 1997) dá a forma inicial da antropologia acadêmica no Brasil. Não é por menos que os primeiros cursos de especialização em antropologia foram iniciados no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, museu esse criado por Darcy Ribeiro e que segundo o seu próprio criador fora “voltado especificamente, contra o preconceito” (RIBEIRO, 1997, p. 195).

         Mariza Corrêa (1995) demonstra que cada programa e cada grande autor vai ganhando especificidades teóricas e particularidades que vão se desdobrando e formatando as escolhas e preferências teóricas e metodológicas que se darão nesses programas, ela ressalta no entanto, que apesar dessas especificidades, fora a institucionalização que permitiu a longo prazo que houvesse uma troca de profissionais e que produções e grupos de pesquisas começassem a ganhar um perfil coletivo e dialogal. Corrêa (1995) também aponta para a diversificação temática que a antropologia começa a ter, principalmente a partir da década de 1980, intensificando os estudos sobre os negros, sobre a questão nacional, e começando estudos urbanos, sobretudo na USP, e mais adiante flexionando as categorias de distância e proximidade, dando uma nova oportunidade de estudos para essa antropologia recém institucionalizada no Brasil (CORRÊA, 1995) e que conta agora com um corpo próprio de antropólogos, dedicados exclusivamente a essa atividade e que ganham certa maturidade teórica e metodológica para levar adiante estudos antropológicos dos mais diversos.

Antropologia brasileira em seu início: a articulação entre temas sobre o índio, negro e a questão nacional

            A antropologia brasileira não pode ser entendida como uma disciplina isolada e independente do pensamento intelectual brasileiro que circundava seu surgimento e institucionalização. Mariza Corrêa (1998) argumenta, por exemplo, que inúmeros movimentos intelectuais do final do século XIX até meados do século seguinte estavam fortemente preocupados com questões raciais, culturais e questões ligadas a formação do povo brasileiro e à problemática nacional. Esses movimentos e discursos marcam produções literárias e científicas da época, e que segundo a autora vão impactar e dialogar com a disciplina antropológica que começa a se delinear no Brasil. Corrêa (1995) também pontua o fato de que a institucionalização da antropologia no Brasil se deu em plena ditadura militar e que essa circunstância histórica também teve seus impactos sobre a disciplina.

Antropologia e a questão nacional

            Entende-se aqui por questão nacional o conjunto de questões sobre a nação e povo brasileiro que perfaziam as indagações de inúmeros intelectuais e escritores de meados do século XIX a meados do século XX. Côrrea (1998) alerta para a influência do nacionalismo e das questões nacionais no contexto em que se deu a institucionalização das ciências sociais no Brasil, sobretudo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).

            A sociedade brasileira viveu ao longo desses dois séculos sob intensa modificação política, demográfica e social, em especial no final do século XIX com a proclamação da República e com sua posterior consolidação. Mariza Corrêa (1998) chama atenção para o fato de que a sociedade brasileira estava se modificando e reorganizando. Ela lembra que mesmo com movimentos de provincianização ou regionalização do conhecimento, as grandes questões que tomavam tempo dos intelectuais desse período eram as questões nacionais, sobre a nação e sobre o povo chamado brasileiro. Essa discussão que colocava em pauta as questões nacionais implicavam na construção da ideia de cidadania e no que seria o cidadão brasileiro. Mariza Corrêa (1998, p. 33) lembra que “no momento em que se colocavam questões de cidadania e de nacionalidade na sociedade brasileira, tornava-se também um imperativo político definir mais claramente os critérios de inclusão/exclusão ao estatuto de cidadão nacional”.

            A diversidade racial e de culturas no Brasil era latente, da mesma forma as diferenças econômicas e sociais. Um questionamento muito pertinente era: “como dar conta teoricamente, das evidentes desigualdades concretas entre os homens[?]” (CORRÊA, 1998, p. 33). Mariza Corrêa (1998) cita, entre vários autores, alguns dos quais chamaram a atenção para a formação diversa do povo brasileiro, baseada no índio, no negro e no português/europeu. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Capistrano de Abreu são alguns desses autores citados que reconheceram a diversidade étnica/racial que está na origem da formação do povo brasileiro. Assim, fica nítido que estudar a questão nacional e buscar uma história brasileira, ou versar sobre essa nação, implica nos estudos e resgate desses povos, dessas origens.

         Tanto as desigualdades entre os homens, quanto a presença de milhões de descendentes africanos em solo brasileiro eram questões que perfaziam as preocupações de intelectuais da época. O espírito científico da época, o positivismo e o paradigma evolucionista estiveram presentes na obra de intelectuais como Nina Rodrigues, Aluísio de Azevedo, Euclides da Cunha e Silvio Romero. Para esses autores, a questão da Raça se tornava determinante para a explicação das desigualdades e – sobretudo em Nina Rodrigues – para a explicar o retardo desenvolvimento brasileiro, colocando a culpa sobre a miscigenação (CORRÊA, 1998).

         Essa questão nacional, implicava a questão da raça, que por sua vez implicava em estudos sobre o índio e o negro. Esses estudos eram inicialmente influenciados por forte componente biológico e por consequência racial. Mariza Corrêa (1998) relata que já em 1856, o Império Brasileiro financia uma Expedição ao Norte do Brasil, e Gonçalves Dias ficou responsável pela etnografia. O objetivo era descrever os índios e nativos do ponto de vista: da organização social, aspectos geográficos, e medições biológicas, estatura, tamanho do crânio, algo relacionado ao que poderíamos chamar de antropologia física ou biológica. Portanto, fica claro, que esses estudos e autores estudaram índios e negros sob a ótica biológica e racial. Corrêa (1998) lembra de Silvio Romero e do seu interesse pelo espetáculo das raças na história do brasil e afirma que “antes de ser pensada em termos de cultura, ou em termos de econômicos, a nação foi pensada em termos de raça” (CORRÊA, 1998, p. 53). Esse paradigma continua forte e só vai se alterar posteriormente com a perspectiva culturalista, que vai se manifestar de forma mais visível em Gilberto Freyre, aluno de Boas.

         Assim, os primeiros ensaios e trabalhos antropológicos no Brasil vão estar diante de uma vasta produção intelectual sobre índios e negros a partir de uma perspectiva biológica e racial. A antropologia vai surgir já perguntada sobre esses povos, e vai construir um novo paradigma, tentando responder as mesmas questões nacionais. Os povos indígenas e os descendentes africanos continuam a ser objeto de estudo para um grupo de intelectuais e antropólogos que no século XX vão se dedicar arduamente no conhecimento e integração desses grupos ao que se sabia por nação brasileira, nação essa recente do ponto de vista da história mundial. Mariza Corrêa (1998, p. 53) lembra que “para todos eles, em suma, e observadas algumas variações, antropologia, etnografia e etnologia eram sinônimos de pesquisas ou abordagens que levaram, inevitavelmente, a pensar a questão da ‘nossa raça’, isto é, do povo brasileiro”. Ela continua e pontua que “antes de termos tido antropólogos diplomados, tivemos então intelectuais que se preocuparam com uma antropologia do brasileiro” (CORRÊA, 1998, p. 53).

         A antropologia chegou ao Brasil, quando o Brasil ainda estava em formação e ainda por se definir como nação. A concentração dos interesses de estudos era, obviamente, voltada para questões internas. Esse paradigma da raça vai marcar diversos pensadores, e a antropologia, quando no seu processo de institucionalização, vai retomar essa discussão e dar sua contribuição, marcando por definitivo a prevalência da noção de cultura. No entanto, não há como deixar de entender a preferência pelos estudos iniciais com índios e negros sem conectar esses objetos privilegiados na antropologia brasileira com a questão da nacionalidade. Obviamente que já existiam outros discursos, e questões políticas e econômicas já eram latentes e discutidas por alguns autores (CORRÊA, 1998) ainda no período do império como Tavares Bastos e Joaquim Nabuco.

         O racismo conseguiu se acomodar na ciência da época. Posteriormente a ciência tratará de abdicar do paradigma racial e a antropologia surge como um conhecimento importante, trazendo uma perspectiva culturalista e relativista. A questão étnica e racial foi forte e ganhou muito espaço no debate intelectual brasileiro nesse período, e nos períodos posteriores (CORRÊA, 1998). A antropologia e em especial a antropologia acadêmica da década de 1960 em diante, vai ser tocada por esses temas ainda não completamente definidos (CORRÊA, 1995). E essas questões não são desvencilhadas dos estudos sobre índios e negros, e muito menos apartada da questão da formação dessa nação, desse povo chamado brasileiro.

A antropologia, sua institucionalização acadêmica e a ditadura militar

          É muito significativo lembrar que a antropologia inicia seu processo de institucionalização acadêmica em plena ditadura militar no Brasil. Mais interessante ainda é lembrar que o primeiro programa de pós-graduação a se consolidar é o do Museu Nacional em 1968, no ano do Ato Institucional número 5, que acirrou a repressão no Brasil. Mariza Corrêa (1995) lembra que apesar da ditadura, a antropologia pode ter seu curso e se desenvolveu quantitativamente e qualitativamente justamente nos anos de maior repressão, a década de 1970. Mesmo como algumas dificuldades burocráticas – como a proibição de professores estrangeiros em regiões de fronteiras – a antropologia teve seu curso garantido.

         Mariza Corrêa (1995) pontua que o olhar para o outro, que a tentativa de compreender o outro e sua perspectiva, que um olhar sem pretensões e sem interesse de arregimentar ideologicamente, e que a forte marca etnológica, talvez, tenham sido os elementos pela qual a “Antropologia pôde crescer num ambiente político tão hostil” (CORRÊA, 1995, p. 106). É possível lembrar ainda, que havia interesse por parte dos militares em resgatar e defender a ideia de uma nação forte, de incentivar ao nacionalismo. Os estudos sobre os índios e negros ganhavam, em muitas situações, um aspecto idílico e formativo do povo brasileiro. A exemplo das obras de Mário de Andrade, como Macunaíma, ou em O Guarani de José de Alencar que buscavam gerir uma identidade nacional a partir da figura do nativo. O estudo sobre populações indígenas e sobre os afrodescendentes não se tornava assim ofensivo ao período político em questão, mesmo que o objetivo de antropólogos não fosse contribuir com a mensagem nacionalista do Regime Militar. Assim, os estudos sobre os índios e negros se encontram mais uma vez contextualizados pelas questões nacionais e de identidade do povo brasileiro.


Referências

 CORRÊA, Mariza. A antropologia no Brasil (1960-1980). In.: MICELI, Sérgio (Org.). História das ciências sociais no Brasil. v. 2. São Paulo: Editora Sumaré e FAPESP, 1995.

CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade. A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, SP: EDUSF, 1998.

INSTITUTO Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará. O que é o instituto? Fortaleza: QIS, 2014. Acesso em: http://www.institutodoceara.org.br/. Disponível em: 06 set. 2014.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1988. Capítulo 05: O que é isso que chamamos de antropologia brasileira.

RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


Como citar este texto:

SANTOS, Harlon Romariz. Percursos iniciais da Antropologia Brasileira. Blog Observare: 2017. Disponível em: https://observare.slg.br/percursos-iniciais-da-antropologia-brasileira/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

Faça um comentário