O insustentável caráter de uma nação

por Alef de Oliveira Lima

Admitamos, assim, que o grande homem influencie seus contemporâneos de duas formas: por sua personalidade e pela ideia que defende. Tal ideia pode enfatizar um velho desejo das massas ou mostrar-lhes uma nova meta de desejo, ou cativá-las de outra maneira. (FREUD, 2018 [1939], p. 151)

            Contemporaneamente a Antropologia não lida muito bem com raciocínios homogeneizantes, por alguma razão relativa a necessidade uma aproximação sincera com a realidade multidimensional dos sujeitos e de suas próprias contradições. Talvez, resida nesse pressuposto em não tratar mais a alteridade como um substrato de diferenças um ensinamento ético. Mas, também se estabelece algumas revogações sobre as teses de grandes teorias, seja o funcionalismo, o estruturalismo ou perspectivismo ameríndio. A questão que gostaria de trazer ao leitor nesse momento de ansiedade e angústia que se gera no Brasil, tem pouco relação com uma lição teórica, e sim um fundo prático: uma maneira de pensar.
Sabe-se que as bases de um povo como seu território e sua soberania representam aspectos externos em termos objetivos, na realidade o que se coaduna na formação de uma nação mantém laços com comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008), ideários mantidos no entorno de memórias e esquecimentos, formas latentes, passados sonhados e no alto grau de uma certa cegueira moral – futuros projetados. O caso das eleições brasileiras parece, em grande medida ser, de um passado raivecido, escondido por máximas: “O melhor do Brasil é o brasileiro”. O engano desta ideia é tanto político quanto psíquico – não subiste aí, nessas comunidades imaginadas feitos de nação que pareçam compor de modo unitária algo compartilhado no entorno de valores democráticas ou republicanos. O que quer uma população que almeja se entregar aos militares? O que existe de desejo na morte e no desprezo de minorias sociais? Que tipo de sociedade se satisfaz na desigualdade e na humilhação do outro?
Nas redes sociais o campo progressista, inexpressivo e incapaz de lidar com o avanço do conservadorismo moral, atribui tal fenômeno ao efeito de “manipulação das massas”, “Sua tia não é fascista ela está sendo manipulada”. As explicações se vinculam a tese de uma alienação originária das multidões que em decorrência de um cotidiano brutalizado ou maciço se veem desprovidas de capacidade intelectual. Ou para não menosprezar o impacto do protestantismo evangélico seja possível voltar atrás e dizer com Marx que a “religião é ópio do povo”, que o conflito de classes resultou na desfiguração aguda de um entendimento social amplo sobre a posição que essa massa ocupa frente a setores elitizados da sociedade. No entanto, como disse no começo desse texto a Antropologia contemporânea irá rejeitar essas interpretações que ao fundo de sua moralidade epistemológica que acreditar na “pureza ética” das classes populares ou ainda mais, insisti em assumir uma superioridade intelectual inapreensível a esses sujeitos.
O que trato na verdade é um impasse ético. O caráter brasileiro, como essa experiência emocional de longo prazo (SENNETT, 1999), veio e se formou perante uma morfologia social do racismo nunca combatida verdadeiramente; preponderou frente ao extermínio de populações autóctones de maneira clara, sistemática e decidida; se fez pelas inexpressivas atuações políticas dos setores populares minguados em movimentos sociais dispersos, cada vez mais dispersos. Se formou também acreditando numa culpa cristã obtusa e originária que se permitiu de modo controverso que se instalasse nas nossas escolas. Sem brio republicano ou democrático. Um povo desaparecido; falam nossos historiadores, sequestrados da própria história. Outra vez uma explicação massificante. O quanto é difícil crer que a sociedade civil, bem como a organização de certos setores festejou o genocídio nas favelas, os grupos de extermínio, justificando-os enquanto sintomas da violência urbana, em que apenas pretos e pobres foram mortos?
Freud nos fala que a massa no limite de suas vontades de autoridade é capaz de se submeter e sofrer nas mãos de um tirano, custe o que custar, porque ao fundo de sua dinâmica pulsional, suas paixões são tão patogênicas quanto a dela. Elas o que querem como se fossem ele – o pai é uma função de identificações que solidifica um Supereu repressor que promove o gozo na fronteira da destruição. Todavia, nada basta nessas justificativas. Os olhos fervem nesses momentos e a apreensão analítica não encontram conforto – tudo se desmancha. Nossas ideias de um povo amistoso, acolhedor, simpático foram cuspidas para longe. A tristeza em se perceber pertencente a um povo limitado por sua própria escolha, autorizado por suas próprias percepções e condenado ao sofrimento inexorável de sua vontade.
Com isso não quero desculpabilizar a classe média que hoje cumpre com demasia eficácia o seu papel pequeno burguês. Na realidade o objetivo é reaprender a pensar as pessoas, o que os historiadores do nazismo identificaram na causação histórica e política do fenômeno de Hitler? Não é o caso de aprender com eles sobre como compreender as pessoas em suas íntimas vontades. Alienados somos nós intelectuais. A esquerda ficou alienada, cegada por uma democracia que nunca realmente ficou pronta, carcomida por dentro. O tempo de um Brasil solidário e bondoso acabou. É difícil dizer se de fato haverá revoltas populares, de negros, pobres, mulheres ou da população LGBTQIA+. Difícil por que se formos passivos por tantos tempos e fingimos viver na normalidade de uma vida democrática praticada fragmentariamente, nada aponta para que agora tais posicionamentos enfáticos sejam possíveis.
O medo do extermínio talvez reacenda o gosto de sangue e a vontade de sobreviver – talvez a pregação “Paz e Amor”, e “Nós Somos os Bonzinhos” realmente se destrua, tendo em vista a real mudança atitudinal dos grupos historicamente marginalizados. Mas, para que isso aconteça tem que haver uma cota insuportável de sofrimento, quiçá, o perdão deva ser eliminado dos pactos políticos e que esses sujeitos possam enquanto sociedade, se ver iniciando uma ruptura ipso facto. Até lá os francos serão consumidos, os sábios viajaram ao desterro, os fortes cairão na linha de frente e os sobreviventes poderão escolher não repetir os mesmos erros e refundar o caráter de uma nação.


Referências

FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo, compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939). São Paulo: Cia das Letras, 2018.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record,1999.


Como citar este texto:

LIMA, Alef de Oliveira. O insustentável caráter de uma nação. Blog Observare: 2018. Disponível em: https://observare.slg.br/o-insustentavel-carater-de-uma-nacao/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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