por Nilton de Almeida Nascimento
Para Lévi-Strauss, em seu projeto teórico estruturalista, a busca científica pela compreensão da realização humana (antropologia) é resultado ultimo de um percurso de deslindamento de um infinito heteróclito de experiências sociais. Uma busca por aquilo que subjaz o império do relativo; a saber, estruturas elementares sob as quais repousariam os edifícios culturais, sendo o elemento humano a fornece-las, caberia ao antropólogo acessá-las. Estruturas do pensamento que, em uma dialética situacional, arbitram “desde a eternidade” sobre as relações do homem com o outro e com o mundo (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 132). O universal deixa de ser graduável – como para os evolucionistas – e passa a ser estrutural.
O itinerário do estruturalismo lévi–straussiano é claro: das ações conscientes ao inconsciente, do dito ao não dito, das formas institucionais heterogêneas esmiuçadas até as suas estruturas. Um percurso que requer do antropólogo o não perder de vista, em meio ao “caos de regras e costumes” a que se expõe na análise etnográfica, “um esquema único, presente e agindo em contextos locais e temporais diferentes” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 38). Para tanto, a relação entre etnologia e história far-se-ia imprescindível, ambas dirigir-se-iam no mesmo sentido: o da compreensão. A última, parte daquilo que está explícito e que por isso é passível de infinitas manipulações ideológicas – o fato registrado, interpretado e imbuído de significado apenas por determinados homens -, para atingir o que está implícito, o indizível, aquilo que, para o homem que vive e faz a história quase sem o saber, não passa do instante, do corriqueiro. Enquanto a etnologia, partindo das manifestações particulares de fenômenos sociais, busca a estrutura comum que dá ordem a essas experiências e as faz humanas.
E é essa a proposta deste ensaio: uma abordagem antropológica estruturalista de uma obra histórica. Se como dito por Lévi-Strauss “todo bom livro de história está impregnado de etnologia”, pode ser esperado desse trabalho que o best-seller de Dee Brown, “Enterrem meu coração na curva do rio”, seja capaz de fornecer o aporte para uma, bem mais criativa que científica, compreensão da irrazoabilidade da violência que segue a ideologia individualista em algumas de suas manifestações. Tendo em vista que, se o individualista[1] também disporia das estruturas elementares de pensamento humano, segundo as quais, a reciprocidade, expressa no estabelecimento da dádiva (dom), é a forma mais imediata de reconhecimento do outro (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 123), porque, no processo de expansão do nacionalismo, a violência/hostilidade parece tomar o lugar do dom, tornando-se meio para o estabelecimento de um vínculo social com o outro, sem que este jamais deixe de ser estranho, mas que, porém, objetiva-o homogeneizado? Terá sido a violência, o ódio pelo outro, a estrutura, em maior medida que o dom, sobre a qual se desenvolveu a montanha da civilização americana?
‘O único índio bom é um índio morto’
Dee Brown, em sua obra “Bury my heart at Wonded Knee”, se propõe a resgatar a voz do índio norte-americano acerca da conquista do oeste dos Estados Unidos, servindo-se de uma série de registros escritos, tanto em jornais da época quanto de documentos das reuniões entre representantes do governo e líderes das tribos indígenas guerreiras. Muito do que foi acordado entre índios e americanos no período 1830 a 1890 ficara registrado em documentos oficiais do governo. Brown pesquisou estes relatos a fim de remontar, e dotar de um sentido patente, o constante choque da colonização com os povos tribais, que resultou em episódios de violência – massacres literalmente – que entraram para história da formação daquele país – “uma narrativa da conquista do Oeste Americano segundo suas vítimas”.
Brown parece certo de ser capaz de fazer emergir, das falas de personagens isolados destes momentos, os sentidos e significados atribuídos por dezenas de povos diferentes a esse choque entre o pensamento selvagem e o civilizado, holismo e individualismo (DUMONT, 2000). De uma perspectiva antropológica, um empreendimento impraticável dada a heterogeneidade de culturas envolvidas. Poder-se-ia afirmar. sobre um trabalho desta natureza, concordando com Lévi-Strauss em sua crítica a história praticada pelos difusionistas, que o arbítrio do pesquisador em selecionar materiais já escassos – no respectivo caso, as falas de chefes indígenas proeminentes – sem situar o indivíduo falante na rede de interdependências sociais a que pertence e discorrer sobre cosmologia de que este dispõe para explicar o real, só poderia resultar na formação de “pseudo-individuos” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 18). Dessa forma, milhares de pessoas que seguem um único líder, se este decide lutar ou fugir pelas planícies e desertos americanos até a morte, são relegadas a uma homogeneidade desconcertante. As motivações para as lutas que permeiam as falas dos chefes repetem-se impregnadas de categorias de pensamento tipicamente ocidental sem que se tenha noção da medida e das formas de aculturação ocorridas.
Adentrando ainda mais em uma crítica estruturalista a obra de Brown, tal estudo, em um primeiro momento, não nos revelaria nada dos processos inconscientes que fundamentam as ações individuais e coletivas. É argumento central do livro: o branco (colono, soldado, político) superpovoa e extrai o máximo de que é capaz de recursos naturais do leste dos Estados Unidos, migra então para o oeste deparando-se com uma imensidão de riquezas naturais prontas a ser exploradas mas também com milhares de índios pacíficos e, segundo Dee Brown, dispostos a dividir a terra, para eles, “infinita como o céu”. Todavia, a avidez do homem branco torna intolerável a ideia de dividir o que quer que seja com “selvagens”, “lobos que correm sobre duas patas pelas montanhas”. Toma-se então, por justificativa para expulsar os índios de seus territórios ancestrais, o que convencionou-se chamar na história de Destino Manifesto. O povo americano arroga para si a incumbência de possibilitar aos índios, por quaisquer meios, o tornar-se civilizado. O exército é mobilizado pelo clamor popular a empreender uma política de relação com os índios que consistia em prende-los em reservas ou extermina-los, a fim de deixar livre o oeste para a colonização branca e o conseguinte desenvolvimento daquele território antes subaproveitado pelos nativos.
Na primavera de 1862, muito mais Casacos Azuis vieram marchando do Oeste para o Novo México. Chamavam-se a Coluna da Califórnia. Seu general, James Carleton, usava estrelas em seus ombros e era mais poderoso que o Chefe águia, Carson. Os californianos acamparam no vale do Rio Grande, mas não tinham nada para fazer, pois os Casacos Cinza haviam ido para o Texas.
Os navajos logo souberam que o Chefe Estrelado Carleton cobiçava bastante suas terras e o metal que pudesse estar escondido sob elas. “Uma região magnífica”, chamou-a, “um território pastoril e mineral soberbo”. Como tinha muitos soldados, sem nada para fazer, exceto marchar a volta de seus acampamentos, experimentando suas armas, Carleton começou a considerar um combate contra os índios. Os navajos, disse, eram “lobos que percorrem as montanhas e deveriam ser subjugados”.
Carleton voltou sua atenção, primeiramente, para os apache mescalero, que eram menos de um milhar e viviam em bandos espalhados entre o Rio Grande e o Pecos. Seu plano era matar ou capturar todos os mescaleros e então confinar os sobreviventes numa reserva sem valor ao longo do Pecos. Isso deixaria o rico vale do Rio Grande aberto para as reivindicações de terras e colonização de cidadãos americanos. Em setembro de 1862, enviou uma ordem: “Não haverá nenhum conselho com os índios, nem quaisquer conversações. Os homens devem ser mortos onde e quando forem encontrados. As mulheres e crianças devem ser aprisionadas mas, claro, não serão mortas. (BROWN, 1973, p. 35).
O primeiro dos episódios de resistência índia narrado por Brown refere-se majoritariamente ao povo Navajo. Depreende-se da declaração acima que a única alternativa ao extermínio era a renúncia incondicional a liberdade, seguida de uma vida miserável em uma terra distante. Situação a qual o mais proeminente chefe deste povo responde:
Meu Deus e minha mãe vivem no Oeste e não os deixarei. É uma tradição de meu povo o fato de não podermos nunca cruzar os três rios: – o Grande, o San Juan, o Colorado. Também não poderia deixar as montanhas Chusca. Nasci ali. Devo ficar. Nada tenho a perder a não ser a minha vida e isso eles podem vir e tomar quando quiserem, mas não me mudarei. Nunca fiz mal nenhum os americanos ou aos mexicanos. Nunca roubei. Se eu for morto, sangue inocente será derramado. (BROWN, 1973, p. 45).
Daí em diante segue a narração de Dee Brown de fatos como esse quase como uma fórmula, que sugere o extermínio dos nativos norte-americanos como sistemático; o exército cumpre a vontade da nação, combate o índio inocente que só luta para manter sua liberdade e identidade mas que por fim sucumbe. Ou seja, tanto as justificativas dadas àqueles acontecimentos, seja por índios ou por americanos, quanto a organização e apresentação deles por Brown, denotam a dimensão consciente da ação humana, refletida, forçosa por dotar de sentido, onde não a espaço para a desrazão. Tudo muito caro a antropologia, porém não seu objetivo.
O que interessa ao projeto estruturalista é a abordagem das narrativas acerca dos episódios de violência, para Brown, inexplicáveis, porém recorrentes, que não só fizeram parte desse processo de afirmação da nação americana, mas, sugiro – como Lévi-Strauss o faz sem se aprofundar -, serem eles próprios uma forma de manifestação consciente de uma estrutura inconsciente e elementar de reconhecimento do outro: a hostilidade (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 136). Porque terá sido esse o elemento estrutural acionado, em lugar do dom, no contato entre o que chamarei de “individuo moderno em afirmação” e os povos tribais norte-americanos? Seguir-se-á a partir daqui uma tentativa de reposta argumentativa, bem menos empírica que o ideal a um estudo científico, mas que almejo satisfatoriamente teórica, que culmine no elemento da teoria de Lévi-Strauss que julgo o mais refinado e profícuo.
Se o estabelecimento da dádiva leva ao reconhecimento do outro e do eu, ela funda não só a sociedade, mas também a identidade. É Mauss, em seu clássico trabalho a respeito da generalidade deste fato social total, que, ao perceber a função hierarquizante deste sistema de trocas reciprocas, nos fornece aporte para pensar que: ao situar os indivíduos em redes de relações de interdependências, como o parentesco e as condições de servidão ou liderança, a dádiva é que outorgaria ao indivíduo os bens de seu universo social que lhes fazem ser alguém – “Os bens não são somente comodidades econômicas, mas veículos e instrumentos de realidades de outra ordem, potência, poder, simpatia, posição, emoção”.
Podendo ser percebido, nesse processo de hierarquização, que se funda no reconhecimento de uma organização social que se assume, e quer, interdependente, inclusive em sua relação com a natureza, o holismo, caro aos povos “primitivos”. Algo que pode ser depreendido das falas dos chefes índios reveladas por Dee Brown. Nestas, as constantes referências aos antepassados, a terra, aos rios e aos animais, como justificativa para a impossível deixa de seu território ancestral, denotam que cada um desses elementos compõe a ordem que sustenta e dá sentido à realidade.
Não se vende a terra na qual as pessoas andam. – Tashunka Witko [Cavalo Doido] (BROWN, 1973, p. 197).
Assim, a ideia da posse de algo que se fundamentasse no cerceamento do seu uso por apenas alguns privilegiados e não fosse estabelecida pelo dom, porquê este implica em uma constante incerteza quanto a durabilidade desta posse, parecia inconcebível aos índios. Como, por exemplo, a oferta de 6 milhões de dólares feita em 1875, pelo governo dos Estados Unidos, pela compra das Black Hills. Montanhas sagradas dos Sioux, tidas por eles como centro da terra, mas, para os americanos, um território mineral magnifico que, de uma só mina de ouro, produziria 500 milhões de dólares. Tendo, a negativa veemente dos índios em vende-las, culminado naquela que foi a pior derrota do exército americano em suas guerras contra os índios, na qual morreu o General George Armstrong Custer.
Perpetrar uma troca equivalente é impossibilitar um circuito de demonstrações de poder e sujeição que se fundamentam em sobrecarregar o outro de bens materiais, preenchidos de valor simbólico, na expectativa de sujeita-lo momentaneamente pelo constrangimento de que este não seja capaz de retribuir, o que implica no só reconhecer a si mesmo a partir da posição do outro. Não obstante, também nas relações de parentesco, reconhecer outrem, e ceder-lhe uma mulher, é imediatamente tê-lo por semelhante (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 86) ao que seguir-se-á “um processo ininterrupto de dons recíprocos”. É esse o princípio da hierarquização holística; situar o “eu” por meio do “outro” desde que ambos estejam ligados a uma cadeia inexorável de dons que funda a sociedade e da qual os indivíduos se servem para construir suas identidades.
Mas, porque, nos anos em que se seguiu o estreitamento de contato entre o nativo americano, empenhado em um esforço de situar o homem branco em uma organização ideal do mundo, o cidadão americano do início do século XIX, protótipo do indivíduo moderno, pareceu preferir o uso institucionalizado da violência como meio de contato prolongado como o outro ao invés da dádiva?
De quem foi a voz que primeiro soou nesta terra? A voz do povo vermelho que só tinha arcos e flechas […] O que foi feito em minha terra, eu não quis, nem pedi; os brancos percorrendo minha terra […] Quando o homem branco vem ao meu território, deixa uma trilha de sangue atrás dele […] (BROWN, 1973, p. 77).
Lévi-Strauss indica que a cultura não poderia deixar de pronunciar-se sobre a situação de tensão que envolve o “eu”, o “outro” e as condições objetivas de existência, mesmo no contato social mais fugaz (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 99). A reciprocidade poria fim ao caos mental que a ansiedade cria nos indivíduos postos a compartilhar o espaço e determinadas condições materiais. Mas é importante ressaltar que, para exemplificar seu pressuposto, Lévi-Strauss se serve de uma situação em que os indivíduos envolvidos dão a mesma significação ao espaço e materiais em questão – o restaurante, o alimento e a bebida. O que não ocorre em relação ao choque entre a civilização americana e os povos indígenas.
A natureza, como o alimento e água que ela fornece, e a própria terra, constituem elementos de valor situados dentro de uma percepção holista da realidade que impede a equivalência entre esses valores e um valor terceiro. Enquanto, nas relações de mercado, como desenvolvidas no âmbito da ideologia individualista, tudo pode ser trocado através do estabelecimento do valor monetário, do que se constata:
O modelo mercantil visa a ausência de dívida no âmago das relações sociais. Neste modelo, cada troca é completa. Graças a lei da equivalência, cada relação é pontual; sem futuro, ela não nos insere, portanto, em um sistema de obrigações. (GODBOUT, 2002, p. 66 e 67).
É esse um dos paradoxos de vínculo social suscitado no individualismo: que a troca equivalente, mesmo não fornecendo o impulso para um continuum de obrigações reciprocas que funda a sociedade, permite ao indivíduo reconhecer o outro, todavia, apenas como possuidor daquilo que se quer. O povo norte americano, em sua marcha do leste ao oeste, vê no índio resistente em abandonar seus territórios ancestrais apenas indivíduos que insistem na posse de algo que, dada a sua mentalidade primitiva, não são capazes de usufruir plenamente. A civilização então poderia ser-lhes imposta, já que os selvagens não disporiam dos meios de fazer valer sua posse sobre a terra para poder comercia-la com o governo dos Estados Unidos. Trata-se essa da justificativa consciente do já citado Destino Manifesto, busco aqui o que há de inconsciente e que fundamentou a forma como essa sociabilização se deu.
Inconsciente entendido por Lévi-Strauss como o universo das leis que fornecem as motivações para a ação dos indivíduos. Motivações que não podem ser expressas discursivamente pois confundem-se com as experiências acumuladas no subconsciente, sobre as quais o inconsciente atua como organizador, legando-lhes significado simbólico de conteúdo, forma e extensão infinitamente variáveis mas que se assentam em estruturas elementares. As instituições surgem daí como síntese do movimento de estabelecimento da ordem mental individual por meio de justificativas para as experiências vividas que sejam socialmente reconhecidas. O discurso do ator social, portanto, seria sempre um esforço por dotar de sentido legitimo para ele, porquê também para os outros, suas ações. E é apenas analisando as formas de interagir socialmente recorrentes, porém irrefletidas, que podemos acessar as estruturas inconscientes que buscamos.
Dessa maneira, o exército americano assume a condição da instituição por nós analisada que carregava sobre si o discurso de representante dos interesses da nação – a saber, dominar os índios hostis e possibilitar o desenvolvimento do oeste. A guerra é empregada como uso racional – e como é de nosso interesse – também, em alguns momentos, irracional, de uso da violência. Ela instaura o direito. Vem no sentido de afirmar a soberania da nação. Essa, mais um desenvolvimento de elementos da ideologia individualista. Vale sublinhar a essa altura que:
Toda violência como meio é ou instauradora ou mantenedora do direito. Se não pode reivindicar nenhum desses predicados ela renuncia por si só a qualquer validade. (BENJAMIN. 2011, p. 136).
Equiparo, essa renúncia de validade, a contaminação dos fins pelos meios. Como quando o uso do exército foge ao emprego sistemático da força para matar índios hostis e prender em reservas os que se rendem, e passa a ter, no dispêndio de um aparato de guerra irrazoável ante a condição do inimigo – em número irrisório e armado de arcos e flechas – e em práticas atrozes de violência, um fim em si mesmo. São muitos os episódios narrados por Dee Brown em que a violência assume a condição aparentemente caótica – por não ser possível dar-lhe sentido simbólico sem que se minta – de fim em si mesma. Sendo o massacre de Sand Creek o mais representativo.
Centenas de índios cheyennes, liderados por Motavato (Chaleira preta), acampados a cerca de 65 km de Fort Lyon, e que acreditavam estar em paz com os brancos e na proteção oferecida pelo major Scott J. Anthony, foram atacados em 29 de novembro de 1864. Morreram 105 mulheres e crianças índias, além de 28 homens. Um grupo de índios pacíficos rendido ao exército é ainda assim atacado. Já não há aí a dimensão de instauração de direito da qual a guerra toma sua legitimidade de vinculo social. Não obstante, a incoerência parece ainda maior quando deparamo-nos com os relatos dos sobreviventes:
Parecia haver uma matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças. Havia cerca de trinta ou quarenta squaws reunidas numa caverna como abrigo. Enviaram uma menina de cerca de seis anos com uma bandeira branca num pau; mal dera uns passos, ela foi atingida e morta. Todas as squaws da caverna foram mortas mais tarde, além de quatro ou cinco homens fora dela. As squaws não ofereceram resistência. Todo mundo que vi morto estava escalpado. Vi uma squaw cortada com um filho ainda não nascido, segundo me pareceu, ao seu lado. O capitão Soule me disse depois que havia sido isso mesmo. Vi o corpo de Antílope Branco com os genitais cortados e ouvi um soldado dizer que iria fazer uma” bolsa de fumo com eles (BROWN, 1973, p. 67-68).
É esse o caso mais emblemático, daqueles apresentados por Brown, aos quais o mesmo não é capaz, e nem é interesse imediato do historiador, de explicar as motivações inconscientes destes acontecimentos que fogem a razão do uso da violência como instauradora de direito. Ao que objeto, haver, sim, uma ordem que subjaz essa incoerência.
Atribuo, a esse uso da violência como fim em si mesma, a estrutura elementar da hostilidade, que cumpriria a mesma função da reciprocidade, havendo somente uma troca em relação aos fatores. Se a última, em maior medida, arbitra sobre a hierarquia e organização social através do dom; dentro da perspectiva holista em que a ameaça a identidade do indivíduo residia em não ser participe da ordem hierárquica do mundo que a dádiva proporciona. A hostilidade quer preeminência em afirmar a identidade por meio do conflito. Trata-se do eu, sentindo sua existência individual ameaçada pelo contato com o outro, empregando a violência, como poder físico ou simbólico, para afirmar-se. Reconhecer o outro é entrar em competição com ele pela própria identidade. O cidadão americano só era americano porque acreditava na existência efetiva de seu país – fronteiras, exército, governo -, o encontro com o índio, para o qual inexistia a categoria nação, põe em dúvida um dos elementos fundamentais constituintes da identidade daquele indivíduo moderno em formação. Ao que este responde com a violência institucionalizada empregada pelo exército racionalmente, mas que, em suas manifestações irrefletidas, desprovidas de sentido – como o Massacre de Sand Creek -, pode-se perceber a estrutura inconsciente da hostilidade atuando no sentido de homogeneizar o outro ou extermina-lo, de forma que os elementos estranhos constituintes do ser de outrem não ponham em dúvida aqueles do ser eu.
É preciso que se reforce que penso que, tanto a hostilidade quanto a reciprocidade, uma ou a outra, situacionalmente, como estruturas, fornecem as leis para a organização e desprivatização da experiência individual possibilitando a interação social. A pergunta a que retornamos nessa altura é: porque, no cidadão americano, entendido como tipo ideal da síntese de alguns elementos da ideologia individualista – projeto de nação, ação racional, troca mercantil – em contato com o outro (o índio), encontramos uma estrutura ao invés da outra?
A resposta a essa pergunta parece estar no que diz Lévi-Strauss ao lançar as bases de seu projeto teórico:
[…] os esquemas mentais do adulto divergem segundo a cultura e a época a que pertencem, mas todos são elaborados partindo de um fundo universal, infinitamente mais rico do que aquele que cada sociedade particular dispõe, de tal modo que cada criança ao nascer traz consigo, em forma embrionária, a soma total das possibilidades dentre as quais cada cultura, e cada período da história escolhem algumas, para conservá-las e desenvolve-las (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 132).
É a cultura portanto que arbitra sobre quais estruturas irão se desenvolver. Nessa perspectiva, a ideologia individualista elegeu a hostilidade como meio de reconhecimento do outro para disseminar-se. O aforismo americano que dá título à segunda sessão deste ensaio atuaria, e não apenas ele mas vários outros elementos da tradição, como instrumento de que a cultura se serve para selecionar as estruturas a ser conservadas e desenvolvidas pelas gerações. Que não se pense, no entanto, que isso se dê de forma programática, mas, sim, como devir histórico-social.
observare.slg.br
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2011.
BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
GOUDBOUT, Jacques. Homo Donator versus Homo Economicus; In: MARTINS, Paulo Henrique (Org.). A dádiva entre os modernos: discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Petrópolis: Vozes, 2002.
LEVÍ-SATRUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982.
LEVÍ-SATRUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
observare.slg.br
NOTAS
[1] Emprego este termo, para me referir ao americano do século 19, dada a incompletude, nesse período, de processos sociais e históricos sem quais penso ser impossível falar a respeito já de um “indivíduo moderno”.
observare.slg.br
COMO CITAR ESTE TEXTO:
NASCIMENTO, Nilton. “Nada vive muito tempo. Só a terra e as montanhas”: estruturalismo lévi-straussiano e análise histórica. Individualismo e hostilidade em Dee Brown. [S.l]: Blog Observare, 2017. Disponível em: < https://observare.slg.br/2017/01/09/nada-vive-muito-tempo-so-a-terra-e-as-montanhas >. Acesso em: dia mês abreviado. ano.