A partir dos capítulos 3, 4 e 5 do livro A Etnologia e a Sociologia no Brasil é possível perceber um conjunto de entendimentos de Florestan Fernandes sobre a sociologia no Brasil, sobre como ele entende que ela deveria ser, bem como sobre o papel social que ele atribuiu a essa ciência e ao sociólogo.
Florestan Fernandes figura como um grande personagem político e pesquisador, importante na história da sociologia no Brasil. Esses referidos capítulos revelam a primeira fase desse marcante sociólogo brasileiro, fase que fora marcada pelo positivismo via Durkheim. Ele nasceu em São Paulo em 1920, entrando em 1941 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e tornando-se assistente do professor Fernando de Azevedo em 1945. Obteve grau de doutor em 1951 a partir da tese A função social da guerra na sociedade tupinambá, pesquisa de caráter etnológica e funcionalista. Os textos aqui considerados, foram publicados em 1958. Posteriormente, Florestan passará à uma leitura marxista e econômica da sociedade, chegando a publicação de uma de suas grandes obras: A Revolução Burguesa no Brasil. Morreu com 75 anos.
Os capítulos apresentam um texto claro, conciso, objetivo e bastante pontuado com seções e subseções bem definidas. Como introdução, Florestan apresenta o que no seu entendimento seriam as condições objetivas e sociais para o florescimento e manutenção da ciência e, por conseguinte da sociologia em uma sociedade moderna. Assim, vai afirmar que a secularização, a racionalização e a nova ordem socioeconômica do capitalismo criam condições ideais e objetivas para o desenvolvimento da ciência. Nesse ensejo, Fernandes vai tecer uma longa trajetória do desenvolvimento histórico-social da sociologia no Brasil, abrindo espaços para discussão sobre os então “obstáculos culturais à aceitação da sociologia” no Brasil.
Fernandes (1958), atribui um papel central à sociologia para o desenvolvimento da sociedade e da organização político-social da nação. Ele encara a ciência e a sociologia como conhecimentos responsivos aos problemas socialmente reconhecidos, com necessidade de resolução. Assim ele apresenta uma posição em que percebe a ciência como resposta à problemas, de cunho prático e convencional. Ele afirma, entre muitas outras passagens:
Os próprios problemas sociais, que se apresentam no presente, não podem mais ser resolvidos pelo arbítrio de um chefe ou por intermédio de técnicas tradicionais. Eles exigem manipulações de maior complexidade e contribuem, por isso, para a expansão da civilização em emergência, industrial e urbana (FERNANDES, 1958, p. 198).
No quinto capítulo, a terceira parte desse conjunto aqui selecionado, Fernandes (1958) apresenta e indica qual deve ser o que ele chama de padrão do trabalho científico dos sociólogos brasileiros. Para ele, a sociologia no Brasil carecia de maiores investimentos e institucionalização, o que explicaria em parte o fato dessa ciência ainda não ter ganhando ares de cientificidade, permanecendo no que ele chama de modelo historiográfico, ou sócio histórico. Ele afirma que “a maioria dos sociólogos brasileiros está inclinada a pensar que a explicação sociológica deve ser, por natureza, uma explicação histórica” (FERNANDES, 1958, p. 220, grifo do autor). Em contraposição, e como saída proposta por ele, a sociologia deveria buscar uma interpretação nomotética, e por um reconhecimento do papel dos modelos matemáticos. Sobre os tais modelos ele afirma:
Eles foram úteis não porque convertessem o raciocínio científico a esquemas simbólicos, mas porque permitiram explorar, construtivamente, novas combinações de conhecimento hipotético-dedutivo com a pesquisa empírica sistemática e com os seus resultados. No entanto, entre os cientistas sociais, especialmente entre os que se dedicavam à lógica da investigação científica e mantinham hábitos filosóficos de trabalho, as coisas não foram vistas desse ângulo. Os modelos matemáticos de explicação acabaram sendo encarados como o motor daquele progresso, o que levou a explicações nas quais eles são definidos, logicamente, como uma via substantiva e autônoma do conhecimento empírico-positivo (FERNANDES, 1958, p. 221, grifo do autor).
Essa necessidade de complexificação dos estudos sociológicos no Brasil, da apropriação de explicações eminentemente sociológicas, devem ser vistas, segundo Florestan Fernandes, como atitudes de aprimoramentos do padrão científico. Aprimoramento que teria em vista uma melhor resposta a problemas sociais brasileiros, para um Brasil que agora está diante de um cômpito desafiador de novas demandas políticas, sociais, econômicas, demográficas, entre outras, que a modernidade impunha. Outro passo importante, para esse aprimoramento, seria a adoção de um padrão integrativo. Tal padrão seria a busca e prática de pesquisas e investigações sociológicas que realizasse uma “combinação sistemática e ordenada dos diferentes alvos da investigação sociológica […]” (FERNANDES, 1958, p. 230). Assim, as explicações sociológicas deveriam ampliar o olhar, analisando sistemas e integrando de forma sistemática, lógica e ordenada, diversos aspectos dos fenômenos sociais, todos encaixados. A proposta de Fernandes parece ser a de criação de sistemas teóricos gerais, entendo a realidade brasileira como um todo, e não apenas “particularidades da vida social”.
Fernandes (1958), entende que o desenvolvimento da sociologia dependeria de um desenvolvimento anterior da ciência e do espírito científico na sociedade, deixando transparecer que sua visão de que a sociologia – e as ciências humanas como um todo – seria o ápice do desenvolvimento do espírito científico, agora se debruçando sobre questões de organização social, de estratégias de configuração das sociedades evoluídas à modernidade e a urbanidade.
Ao final, ele conclui afirmando que o desenvolvimento – e sucesso – da sociologia no Brasil estaria em relação direta com duas atitudes básica: (I) aprimoramento do padrão de produção científica, e (II) reconhecimento do papel social dessa ciência. Ele finaliza no último parágrafo do capítulo 5:
Em suma, a renovação dos “estudos sociológicos” no Brasil depende em grande parte de iniciativas intelectuais que podem ser tomadas pelos sociólogos. […] A adoção de um padrão de trabalho científico integrativo, que permitisse explorar metodicamente todos os alvos possíveis de um projeto de investigação, contribuiria para assegurar o uso mais produtivo dos recursos técnicos, financeiros, e humanos de que dispõem. Contudo, iniciativas desse gênero não eximem os sociólogos brasileiros da obrigação de intervir, diretamente, na instituição de novas condições de trabalho, que favoreçam a posição da sociologia em nosso sistema científico e concorram para criar possibilidades concretas de aproveitamento prático dos conhecimentos sociológicos, na solução de problemas sociais brasileiros (FERNANDES, 1958, p. 231, grifo nosso).
É interessante pensar, a partir desses termos colocados por Fernandes 57 anos atrás, se a sociologia hoje ainda é historiográfica, ou se já possui uma explicação sociológica própria? Se possui, qual seria o papel dos modelos matemáticos, sobretudo probabilísticos nesse tipo de explicação? Ou quais outros possíveis caminhos a sociologia brasileira seguiu? Além disso, é mister questionar sobre o real potencial da sociologia na organização da vida social, na solução de problemas sociais. Como a sociologia caminha hoje e como ela se insere na vida política e social da sociedade brasileira? Ou até mesmo sobre como ela reflete novos padrões e condições objetivas de hoje? Enfim, esse texto apresenta uma perspectiva positiva da sociologia, enquadrado no tempo-espaço e pessoa de Fernandes a mais de meio século atrás. Ficando hoje, muitas indagações e a necessidade de um levantamento atual dessa sociologia aqui praticada e reflexões que possam dialogar com esses termos e considerações de Florestan Fernandes (1958), fazendo assim uma espécie de balanço e resgate do caminhar dessa ciência em terras brasileiras, bem como para tecer reflexões sobre possíveis devir e sobre caminhos futuros.
Referências
FERNANDES, Florestan. A etnologia e a sociologia no Brasil. São Paulo: Anhambi, 1958. p. 179-231. Capítulos 3, 4 e 5.
Como citar este texto:
SANTOS, Harlon Romariz Rabelo. A sociologia no Brasil, seu estado e o devir: apontamentos a partir de Florestan Fernandes. [s.l]: Blog Observare, 2016. Disponível em: https://observare.slg.br/2016/06/02/a-sociologia-no-brasil/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.