A Revolução Industrial foi um dos processos mais transformadores da vida social, econômica e política da história humana. Estabelece de vez um longo processo de modernização que vinha desenvolvendo-se na Europa. Tendo a Inglaterra como locus primário desses acontecimentos, essas transformações espalham-se pela Europa (HOBSBAWM, 1986) e impactam na dinâmica geopolítica e geoeconômica mundial da época.
Os asiáticos, em particular, possuíam um nível de desenvolvimento e organização social não desprezável, eles, no entanto, não foram os que inauguraram esse intenso processo de transformação industrial e capitalista que se viu na Europa (DARWIN, 2015). Talvez em Weber (2004) esteja de fato a explicação para as afinidades eletivas entre o protestantismo e o espírito capitalista empreendedor e contador. O modo de pensar e agir no mundo oriental, marcado por uma epistemologia holística e não-instrumental pode ter sido o empecilho culturalmente estrutural para suplantar o milagre econômico ocidental e sua hegemonia global[1].
Japão e o Xogunato Tokugawa (1640-1868)
Por mais de duzentos anos a política no Japão se organizou através de uma espécie de regime militar, centralizada na figura do Xogum (chefe militar maior) do clã Tokugawa e pelos daimiôs, senhores de terras hereditárias que são comparados aos senhores feudais europeus. Esse sistema era protegido por uma elite militar formada por samurais, que prestavam seus serviços sobretudo aos daimiôs. A grande parte da população era formada por camponeses, sendo a agricultura e pesca as atividades econômicas mais importantes nessa época (CURY, 2006).
A prática do xogunato era de isolamento geopolítico. Manter fronteiras intensamente controladas era uma das estratégias para a manutenção da estabilidade do sistema. No entanto, como apontam Vania Cury (2006) e John Darwin (2015), com a Revolução Industrial no ocidente, ficou cada vez mais difícil para os impérios e países asiáticos manterem-se fechados. Isto porque o avanço econômico, tecnológico e burocrata das nações europeias impunham um lógica geopolítica diferente. Aliado a gana expansionista europeia, tornou-se latente uma ameaça à soberania e aos territórios asiáticos. O Japão, em termos relativo, passou a estar em uma clara desvantagem econômica e militar em pleno período de expansão territorial e imperial europeu.
Restauração Meiji, “poder iluminado”
A pressão externa sobre o xogunato refletiu-se numa série de tratados comerciais desvantajosos para o Japão, a liderança do regime Tokugawa ficou seriamente abalada. A partir de 1868 inicia-se um novo período político japonês, a Restauração ou Inovação Meiji. Se caracterizou pela ascensão de uma classe de jovens-adultos samurais e intelectuais ao poder, que desde o início estabeleceram o sistema Dajokan, um Conselho de Estado, que se configurava como uma instituição de estilo parlamentar[2]. Liderados por um primeiro-ministro de origem não nobre, Ito Hirobumi, o movimento utilizou a figura do jovem Imperador Mutsuhito para promover união política e coesão social, com um entrelaçamento da redescoberta de tradições nacionais e xintoístas (HENSHALL, 2008).
Nota: Xilogravuras multicoloridas dos membros do governo Meiji em seu princípio, quando o governo imperial reassumiu o Japão em 1868 após o Xogunato Edo.
Fonte: Biblioteca Mundial Digital.
Esse novo governo fez compromissos públicos (Carta de Juramento) que previam uma maior flexibilidade administrativa, mais transparência nos negócios públicos, possibilidade de participação de diversas classes sociais/política e liberdade para a atividade econômica (HENSHALL, 2008).
Nota: Xilogravura datada de outubro de 1888, retrata uma reunião do Conselho Privado Japonês, que foi criado em 1888 com a finalidade de deliberar sobre propostas para uma constituição.
Fonte: Biblioteca Mundial Digital.
Ainda no xogunato algumas mudanças em prol da modernização foram sendo implementadas, como a tentativa de aplicação de técnicas agrícolas ocidentais e a criação de algumas experiências industriais. A partir de 1868 essas tendências se fortalecem e forçam um novo arranjo político, em torno da ideia de Estado japonês. Sobre isso Viana Cury (2006, p. 140-141) comenta:
Esse fortalecimento do Estado, que buscava sua legitimação, tanto nas questões de ordem interna quanto nas questões de esfera exterior, tendo em vista a defesa da soberania nacional do país, deveria ser atingido, em especial, mediante a constituição de uma força militar moderna e poderosa. Para atingir esse objetivo elementar, tornara-se mesmo fundamental o crescimento acelerado de um conjunto de atividades industriais que garantissem a sustentação de uma contínua produção de armas e navios em grande escala. A indústria bélica, assim como a construção naval, foi a pedra de toque desse período histórico do desenvolvimento econômico do país.
A Restauração Meiji se caracterizou como um movimento de protagonismo estatal, de união nacional em prol de uma busca por sobrevivência e reposicionamento geopolítico global. O desenvolvimento social e econômico constituía-se como um problema coletivo e que dificilmente resolver-se-ia, na velocidade necessária, sem atuação de um Estado atuante e empreendedor. Como bem comenta Cury (2006, p. 142) “o Estado assumiu um papel central na direção das transformações que estavam em curso”. É importante já aqui ressaltar que tal protagonismo não foi antagônico ao crescimento e acumulação do capital e do fortalecimento da iniciativa privada.
Protagonismo do Estado japonês
A principal ação estatal foi transferir um alto volume de recursos e investimentos para o setor industrial. O Estado operou, visto a incapacidade inicial dos entes privados, uma transferência de recurso das atividades agrícolas para atividades industriais, de caráter urbano. Além disso, implementou uma série de mudanças econômicas, fiduciárias e fiscais. Dentre essas, a instituição da propriedade privada moderna, abolindo o esquema senhorial hereditário, revisão de impostos e mudanças outras que forçaram a comercialização dos excedentes agrícolas, fortalecendo o comércio interno e externo (CURY, 2006).
Nota: Diário escrito à mão de Ito Hirobumi em sua viagem ao estrangeiro em 1871. Passou pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Prússia, Rússia, entre outros países europeus a fim de promover o reconhecimento da Restauração Meiji e promover novos acordos comerciais.
Fonte: Biblioteca Mundial Digital.
Essa modernização elevou o nível dos sistemas de comunicação, gestão e transportes. O telégrafo e a ferrovia foram vistas como fundamentais, bem como o desenvolvimento operacional e militar. O desenvolvimento da indústria têxtil e do setor elétrico permitiram um novo setor econômico, inclusive aberto a parcerias internacionais e inserindo-se paulatinamente em circuitos tecnológicos e produtivos globais (HENSHALL, 2008). Outra área considerada fundamental foi a educacional, atrelada ao desenvolvimento científico e tecnológico. A educação já era vista como algo importante desde o xogunato, mas ganha novos fôlegos e enormes investimentos na Restauração Meiji. Descentralização de recursos garantiu o desenvolvimento da educação básica e a educação secundária possuía um forte caráter profissional. Cury (2006, p. 155) comenta que “é inegável que o esforço educacional realizado pelo governo teve um efeito extremamente positivo, do ponto de vista do desenvolvimento econômico”.
É importante destacar que esse processo rápido de transformação econômica gerou tensões e crises sociais. A reestruturação tributária e do regime de terras formou um classe de camponeses e produtores a terem que se integrar em novos circuitos econômicos. Além disso, com o crescimento populacional japonês e com a dificuldade de absorção de mão-de-obra, o governo foi levado a promover uma forte política de emigração. Houve um grande fluxo migratório para o continente americano e graças a isso é que o Brasil passou a ter a maior população nipônica fora do Japão. Destaca-se a imigração para os estados de São Paulo e do Pará, sobretudo para atividades agrícolas.
Legenda: Cartaz de promoção à emigração para o Brasil e Peru.
Fonte: Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil.
Força dupla: protagonismo estatal e iniciativa privada
Ao longo da década de 1880, após este período inicial de reformas e investimentos, o governo japonês iniciou um processo de privatização, colocando a iniciativa privada no controle de diversas empresas estatais. É nesse período que surgem os zaibatsu, grandes conglomerados industriais e/ou financeiros controlados por famílias ricas como a Mitsubishi, Mitsui, Furukawa e outras que tinham grande poder de influência econômica e política.
Ao longo do Período Meiji, o governo desempenho um importante papel na orientação da economia, desenvolvendo e mantendo relações com o mundo dos negócio e facultando apoios às áreas e às companhia que privilegiava. A natureza exata desse papel no Período Meiji é objeto de considerável debate […] (HENSHALL, 2008, p. 138).
Essas mudanças transformaram o Japão, uma modernização rápida e consistente que o levou a um status de potência de segunda classe na época, chegando, na Primeira Guerra Mundial com uma capacidade totalmente diferente daquela na era do xogunato[3]. Deixou de ser um país rural, militarmente atraso, para tornar-se um país relativamente industrializado e com forças militares suficientes para a manutenção de sua soberania. Com uma economia mais integrada internacionalmente e com vontade de participação geopolítica.
Legenda: Uma rua em Tóquio, 1905.
Fonte: Japan Experience.
A compatibilidade é possível e por vezes produtiva
A evolução capitalista no período da Revolução Meiji, as motivações sociais e nacionais pelo desenvolvimento, aliado ao protagonismo estatal mostram um tipo de modernização singular, apontando para a não incompatibilidade entre iniciativa privada e empreendedorismo estatal.
Por tudo isso, e guardadas as suas especificidades, a modernização do Japão representou um dos eventos mais expressivos da progressiva expansão do capitalismo do século XIX., embira a posição internacional do país só viesse a ser consolidada após 1945. Ao estabelecer um paralelo entre a ação governamental e a ação empresarial na formação do modelo japonês de desenvolvimento procuramos realçar em especial a compatibilidade dessas duas forças na determinação do sucesso econômico do país. (CURY, 2006, p. 169-170, grifo nosso).
O exemplo do Japão, junto a de outros países asiáticos como a Coreia do Sul e China, mostram-se como contraexemplos históricos da tese neoliberal de que o estado é sempre um obste ao desenvolvimento econômico e social. Isso indica que há relações sociais, historicamente constituídas que conduzem o desenvolvimento por vias plurais.
Com certas similitudes, podemos pontuar também o caso americano no New Deal. Um período de aumento da atuação do Estado e de novos termos na relação com a iniciativa privada, focando no crescimento social como um todo e buscando resolver os problemas causados pela falta de regulamentação no mercado.
A economista Mariana Mazzucato (2014) em O Estado Empreendedor apresenta que a atuação do Estado e a parceria com a iniciativa privada gerou e gera riqueza, tecnologia e inovação em diversos setores, a maioria oriundos de investimentos em ciência básica, em atividades de exploração (como a espacial) e no desenvolvimento de tecnologia militar. Apresenta argumentos e evidências contemporâneas de que os países desenvolvidos, inclusive e sobretudo o próprio Estados Unidos, sempre tiveram uma atuação estatal significativa. Obviamente diferente daqueles termos que se observou com a Restauração Meiji, hoje sobretudo baseada na inovação e pesquisa de alta performance.
Atualmente, o caso chinês com a tecnologia do 5G e da inteligência artificial, ou o caso alemão com o investimento em Indústria 4.0, são exemplos dos fluxos de investimento e escalabilidade entre Estado e Mercado. Tais processos mostram que esse antagonismo não é produtivo e é difícil pinçar precedentes históricos de sociedades sustentadas apenas pela livre e individual iniciativa.
Notas
[1] cf. a tese da Great divergence por Samuel Huntington.
[2] Posteriormente foi criada uma Dieta, um parlamento bicameral, constituída por uma Câmera dos Pares (nobres e acadêmicos nomeados pelo Imperador) e por uma Câmara dos Representantes (eleitos por adultos do sexo masculino pagantes de impostos) (HENSHALL, 2008).
[3] cf. os Arquivos e Mausoléu da Agência da Casa Imperial Japonesa (https://shoryobu.kunaicho.go.jp/)
Referências
CURY, Vania Maria. História da industrialização no século XIX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006. Capítulo 04, Japão: um caso singular de modernização, 1868-1914, p. 136-173.
DARWIN, John. Ascensão e queda dos impérios globais. 1400-2000. Lisboa: Edições 70, 2015. Capítulo 04, A Revolução Eurasiática, p. 220-234.
HENSHALL, Kenneth. História do Japão. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2008.
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
MAZZUCATO, Mariana. O Estado empreendedor. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Como citar este texto:
SANTOS, Harlon Romariz Rabelo. A Restauração Meiji e o protagonismo estatal. Blog Observare: 2020. Disponível em: https://observare.slg.br/a-restauracao-meiji-e-o-protagonismo-estatal/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
Texto muito bom Harlon! Ótima pesquisa de imagens também.