Por Alef Lima
Em que se baseia o mérito? Quais são seus fundamentos? Perguntas de todas as ordens preenchem a história da meritocracia como configuração ideológica. Poucas vezes encontramos o mérito em outras formalizações que não aquelas vinculadas a uma abordagem marxista, ou excessivamente politizada, uma vez que o mérito se consagrou enquanto estrutura discursiva que dissemina os valores burgueses em variados âmbitos da vida social. A meritocracia como princípio seletivo e forma de diferenciação social tem seu passado burguês aliado a diferentes teorizações que surgiam na modernidade europeia. Não apenas a definição do indivíduo dotado de racionalidade do cogito cartesiano, nem somente a filiação jurídica as propensões do direito a propriedade, a igualdade, e a justiça. O mérito é tanto uma rede de diversas ideologias como o liberalismo inglês e o iluminismo, quanto uma utopia advinda dos ideais socialistas e comunistas dos séculos XVIII e XIX[1].
Portanto, ao invés de pensar que os méritos são tão exclusivamente atributos de interesses ideológicos, podemos construir sua genealogia de saber-poder em torno do qual seu surgimento nas sociedades complexas ressalta a ascensão de novas maneiras de selecionar, classificar, incluir e excluir. Principalmente quando a educação formal e universal se realiza como valor em todo o continente europeu, e o empirismo confere a experiência e a socialização um caráter legítimo de diferenciação entre os indivíduos, estendendo ao registro jurídico um sentido essencialmente formal de igualdade. A meritocracia é em sua forma histórica um complemento à formação do individualismo valorativo – ela, estrutura in facto a individualidade, o esforço, a inteligência, o sentido empreendedor da ação individual. A ênfase da burguesia em tornar o mérito princípio do status social é precedido do esforço de desmoralizar as noções de herança, linhagem, direito divino, como produtos indissolúveis do destino social. O destino é tomado como produto de uma prática constitutiva do sujeito, dito de outro modo: o indivíduo juridicamente determinado passa a consistir também em um indivíduo subjetivamente ativo[2]. Portanto, a burguesia como classe social, inaugura dois sentidos antinômicos e complementares do indivíduo – a meritocracia acaba funcionando como conexão sociologicamente viável entre os dois conceitos.
A despeito do que se pretende neste texto, a saber: compreender por meio metafórico a obra do diplomata britânico Roald Dahl, A fantástica fábrica de chocolates, enquanto modo de caracterizar diversas nuances sociais e culturais do mérito para além de sua versão ideológica ou idealizada. Deve-se esclarecer introdutoriamente aquilo que comentamos a respeito da meritocracia e suas ligações com o individualismo. Na realidade a perspectiva que será esboçada baseia-se, sobretudo, em entender o mérito como arbitrariedade simbólica – constituída em diferentes planos, com diferentes intenções, provocando efeitos subjetivos por meio da sutileza. O mérito é aqui entendido enquanto uma “fabricação” ou um “feitiço”, é tanto produtor de diferença quanto maquinação de intuitos sociais dispersos. A dificuldade de tratar a meritocracia em forma de objeto simbólico advém do fato que o mérito toma graus diferenciados, assume topografias de status adversas e pode ter como principal característica um efeito de convergência. Todos esses aspectos dificultam a procura da pluricausalidade subjacente ao mérito e confortam as abordagens unilaterais.
Realmente pode ser complexo tratar da meritocracia como um objeto simbólico, pelo fato da necessidade em pensar de modo aberto sobre o mérito: 1) ideologia que camufla a concessão de privilégios aos escolhidos, 2) forma convencionalmente aceita para estabelecer critérios de competição e igualdade, 3) maneira de incidir o empreendedorismo enquanto ideologia, 4) demanda de reconhecimento aos esforços individuais, 5) demanda de legalidade e legitimidade para a distribuição dos bens simbólicos da “cultura”, 6) modo de estabelecer diferenças morais e qualitativas aos sujeitos, 7) estrutura de gestos e maneiras culturalmente vivenciadas que tem como intuito excluir, incluir e acessibilizar os sujeitos ao todo social, 8) forma de homenagear as capacidades individuais como a inteligência e o talento, 9) efeito de subjetivação, dentre outros. Entretanto, a literatura pode muito bem ser utilizada para cumprir essa função de integrar esses traços que cotidianamente perceberíamos dispersos.
Roald Dahl é famoso na literatura juvenil pelo cunho de ludicidade que imprime nas suas obras, sua trajetória na diplomacia foi antecedida pelo seu emprego em uma companhia petrolífera e por suas incursões como piloto de guerra aos territórios da Grécia, e da Líbia. Filho de comerciantes noruegueses Dahl viveu todo o seu processo educativo num colégio particular até completar 18 anos. Em 1961 escreve: James And The Giant Peach, e posteriormente Charlie And The Chocolat Factory, em 1964[3]. Essa obra ganha adaptações para o cinema em: 1971, A fantástica fábrica de chocolate com direção de Mel Stuart e mais recentemente, em 2005 com a direção de Tim Burton e Jonny Deep no papel de Willy Wonka. Dahl morreu no ano de 1990, tendo recebido diversos prêmios de literatura.
Em A fantástica fábrica de chocolates Dahl nos presenteia com a ilustração maravilhosa de uma unidade fabril criativa e magicamente administrada por Willy Wonka, o chocolateiro mais incrível de todo o mundo. Wonka produz invenções fantásticas e completamente impossíveis como uma bala que nunca acaba, um chiclete que vale por três refeições completas, além de seus curiosos empregados os umpa-lumpas que manejam máquinas gigantescas e cuidam para que a fábrica funcione de modo harmônico. A história começa quando Charles Bucket, um menino magrinho, que vive de maneira precária com sua família, quase passando fome, é informado que o misterioso Willy Wonka escondeu em seus chocolates cinco bilhetes dourados que dão acesso a uma visita guiada por toda a fábrica e ainda a um suprimento de chocolate ad infinitum. Mas, o nosso herói fica desanimado com a notícia, afinal ele recebe apenas uma barra de chocolate por ano, no dia do seu aniversário. As condições da família Bucket não são das melhores. Charles mora com seu pai, com sua mãe e mais duas avós e dois avôs. Seu desânimo se deve logicamente a percepção de que quem irá encontrar os bilhetes serão as crianças que podem consumir chocolates no mínimo todos os dias.
Charles estava certo e seu raciocínio se concretizou, a primeira criança a encontrar o cartão dourado foi Augusto Glupe, um menino roliço e guloso dotado de uma fome insaciável e sem limites. Para os fins desse texto, Glupe e sua mãe acabam representando o mérito como uma forma de gula, de ambição – algo que foge ao domínio estritamente sociológico ou cultural, a gula de Augusto refere-se a uma demanda de amor, que produz uma necessidade irascível. O mérito aqui toma sua forma social através de um impulso psicológico doentio. Talvez, sem querer especular, Glupe come e ambiciona a comida por não sentir-se completamente amado. Quando os jornais anunciam que ele foi o primeiro a descobrir o bilhete toda a cidade para, se institui feriado municipal, fanfarras e tudo mais. Todo um processo de reconhecimento social é mobilizado, o mérito de Glupe é “fominha” em uma expressão mais popular. Quantos casos desse tipo os jornais da atualidade noticiam: jogadores de futebol que ganham fama e prestígio monopolizando o jogo nas suas figuras, quantas pessoas não camuflam suas intenções e, se centram em perseguir o reconhecimento midiático por meio de ações esdruxulas e mesmo perigosas – a metáfora da fome cabe ao mérito.
A segunda criança premiada é Veroca Sal, uma menina entojada, mimada e dominadora. Sal faz com que seu pai, um importante empresário dos amendoins, obrigue suas funcionárias a encontrar o cartão dourado. Ela representa uma ideia de privilégio, a meritocracia aqui toma uma forma pura aos olhos da abordagem marxiana. Veroca Sal sintetiza o mérito complemente vazio, sem esforço, rememorando uma noção de favorecimento e desigualdade social – uma das principais críticas feitas à meritocracia é o fato de não balizar as condições sociais na produção dos esforços individuais. Portanto, capaz de dividir e radicalizar as diferenças sociais, principalmente pela via dos capitais econômicos. O mérito nesse sentido é um sinal de favorecimento, mas do que de um esforço particular ou uma virtude.
A terceira criança é Violeta Chataclete, uma menina antipática que nunca para de mascar chicletes, seu objetivo é sempre ultrapassar recordes, ela nos lembra uma esportista. O mérito aqui se vincula a uma competição, algo que está em constante disputa, algo que deve ser conquistado. Existe uma excitação contínua em Chataclete, ela nunca para e sempre parece está se testando e ampliando seus próprios recordes. Subjetivamente suas ações são direcionadas para a disputa, o acirramento. O mérito é tanto um alvo quanto um pódio aos vencedores. Miguel Tevel é o quarto ganhador, ele vive assistindo televisão e acha que esse hábito o garantiu uma esperteza, uma certa inteligência excepcional – não é à toa que ele está sempre criticando Wonka ao longo da visita pela fábrica. O mérito é visto em Tevel como uma capacidade primorosa que deve ser homenageada – ele quer o reconhecimento vitorioso de suas habilidades de acuidade e destreza mental. A meritocracia é destinada aos mais talentosos e habilidosos, não aos ambiciosos, aos mimados, ou aos competitivos.
Charles por meio do acaso de ter encontrado uma moeda, consegue encontrar o último bilhete, ele leva seu avó junto com ele na visita a fábrica. O último ganhador acaba simbolizado o mérito como sorte – um jogo probabilístico, completamente ileso de interesses ideológicos ou intentos políticos. Charles, o garoto pobre, teve as mesmas chances que todos os outros e foi sorteado, o acaso o protegeu. Ele é o grande merecedor, sempre calmo e prestativo com sua família, esforçado na escola. O mérito é então um atributo moral que deve ser reconhecido – uma qualidade tanto interior, quanto exterior, pois conduz a coesão social, e sinaliza como diria Marcel Mauss, a lógica da reciprocidade. O mérito de Bucket é mostrado na trama enquanto uma construção, um passo a passo, pois ele não nasce merecedor, torna-se um.
Na visita a fábrica cada criança deixa transpassar suas características, e uma a uma, menos Charles é claro, é retirada de cena. A fantástica fábrica de Chocolates opera a purificação do mérito – Willy Wonka de modo performático elabora mecanismos sutis para fazer sua seleção, cada criança e suas qualidades são testadas de modo que aquela mais “sincera”, mais “humilde” prevaleça. Em suma, observamos Charles e sua ascensão social e moral. Ele é o único que resta, não é apenas o mais apto ou o mais correto, ele traduz um suprassumo da meritocracia – o direito de ascender pelo que se é. Sem qualquer mecanismo de favorecimento. Charles ganha toda a fábrica do senhor Wonka e acaba tornando-se o único herdeiro. Ele é aquele que angariou a simpatia de Willy Wonka e mostrou-se singularmente diferente.
É perceptível que a meritocracia se vincule a todo um espectro de questões: classe social, mobilidade, status, participação política dentre outras. No entanto, não é unicamente por esses pontos de vistas que podemos analisá-la. Ela como um produto qualquer, como uma barra de chocolate é fabricada por depurações, tem processos de colheita, de lavagem, secagem, separação, trituração, mistura, adicionamento de químicos, e ainda os processos de montagem, estocagem e distribuição. Evidentemente, todo esse empenho e complexidade são feito nas sombras dos gestos simbólicos – as formas de conferir o mérito. O mérito tanto pode ser a afirmação ideológica do favorecimento, como a possibilidade de induzir certos sujeitos a mobilidade social. Dizendo de outro modo, o mérito é construído por estruturas de classificação morais e sociais que operam detalhes “fantásticos” e triviais no cotidiano dos sujeitos. Não por acaso que ao longo da narrativa de Dahl nós se identificamos com Charles, ele é mostrado como personagem chave, moralmente superior, sua relação com a família, seu aspecto inocente e contido, sua simpatia, sua humildade, a forma que todos o tratam, levam-nos a creditar sobre ele a insígnia de merecedor. Não que ele não seja digno, mas o que devemos ponderar é: quais mecanismos o dignificam, além desse jogo social que se processa no livro, não seria justamente esse jogo que produz o mérito de Charles? Então, não é mérito que vem antes do reconhecimento social e sim o contrário. Um reconhecimento social pré-estabelece os critérios do mérito, não somente o favorecimento, a individualidade, o esforço, a experiência. A meritocracia produz uma naturalização resistente, pois ao olharmos para ela só conseguimos ver sua simbologia e deduzimos então para essa simbologia uma causa única. O que realmente ocorre é que nos esquecemos de pensá-la processualmente, como manufatura de símbolos e gestos, os mesmos que fazem com que Charles acredite-se como o grande merecedor, mal o sabe os testes que passou para ser o escolhido.
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REFERÊNCIAS
DAHL, Roald. A fantástica fábrica de chocolates. Tradução de Dulce H. Vainer. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
DUMONT, Louis. O individualismo: Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: 1985.
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NOTAS
[1] KREIMER, Roxana. Historia del mérito. Disponível em: http://www.oocities.org/filosofialiteratura/HistoriaMeritoIndice.htm. Acesso em 15 de dezembro de 2015.
[2] SALEM, Tânia. A “despossessão subjetiva”: os paradoxos do individualismo. Disponível em: < http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_18/rbcs18_05.htm >. Acesso em 08 de marco de 2016.
[3] Biografia Roald Dahl disponível em: http://www.infopedia.pt/$roald-dahl. Acesso em 20 de março de 2015.
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COMO CITAR ESTE TEXTO:
LIMA, Alef de Oliveira. A fantástica fabricação social do mérito: notas de leitura da obra “A fantástica fábrica de chocolate” de Roald Dahl. [S.l]: Blog Ad Observare, 2016. Disponível em: < http://goo.gl/TOJF9j >. Acesso em: dia mês abreviado. ano.