O tema da mudança social e dos processos sociais marcam as ciências sociais e figuram como chaves de análise importante para a compreensão da vida social em suas permanências e dinâmicas. As análises de mudança social podem se preocupar com sistemas menores e particulares, ou com sistemas sociais maiores, macros, que incluem um extenso programa de estudos históricos, estruturais, econômicos, entre outros. A intenção desse texto é apresentar princípios básicos utilizados por Weber para a análise de mudança socioeconômica de nível macro, princípios sociológicos que parecem ter, assim como o autor, um caráter clássico e contemporaneamente válido. A partir da leitura do texto As causas sociais do declínio da cultura antiga[1] e do texto A origem do capitalismo moderno[2] é possível delinear como Weber tratou metodologicamente os temas do declínio da cultura antiga romana e de como analisou o processo de surgimento, manutenção e afirmação do sistema capitalista na Europa. Esses dois textos analisam processos e dinâmicas que caracterizaram mudanças socioeconômicas em nível macro, com fortes impactos territoriais e históricos.
Esses dois textos de Weber indicam que a análise de processos e de mudanças sociais macros, necessitam de, ao menos, duas posturas metodológicas: (I) considerar a multivariabilidade do fenômeno, abordar e apontar o máximo de determinações e variáveis possíveis relacionados e/ou com afinidades ao processo histórico estudado; (II) valorizar a análise das ideias, subjetividades e sentidos que criam a realidade, considerando os meandros da relação entre condições materiais e motivações/ideais. Unem-se a esses dois princípios outros mais gerais, como a separação entre juízo de valor e fatos, da necessidade de dados empíricos, – no caso de tais textos, dados históricos – e do diálogo com outros estudiosos sobre o tema.
Se fará aqui um esboço dos dois textos, bem como apontamentos que enfatizem esses dois princípios acima anunciados.adobservare.com
As causas sociais do declínio da cultura antiga
Com intuito anunciadamente histórico e acadêmico, Weber se debruça a responder as razões do “crepúsculo da cultura no mundo antigo?” (WEBER, 1979, p. 38), fazendo um contraponto a uma série de perspectivas unidimensionais, como as que enfatizavam a forte atividade bárbara; ou de que os melhores homens da raça romana haviam morrido nas guerras, fragilizando racialmente o império; dentre outras teses, facilmente falseadas. Weber antecipa: “o ocaso da cultura antiga coincide com o restabelecimento da família nas camadas inferiores da população […] o restabelecimento do estamento camponês deu-se ao declinar da cultura antiga” (WEBER, 1979, p. 38).
Weber fará uma linha histórica para organizar os inúmeros processos que levaram ao restabelecimento do estamento camponês nuclear em detrimento da cultura antiga romana, nitidamente urbana. Começa considerando que para a possibilidade de uma cultura diversificada e complexa, há a necessidade de uma economia urbana, de mercado, comércio e de diferenciações no trabalho, permitindo recurso e tempo para um excedente simbólico, ou seja, para a produção cultural. Ao mesmo tempo, tais cidades eram sustentadas e tinham seus mercados abastecidos pela produção agropecuária baseada no trabalho escravo. Sob o domínio de grandes proprietários de terras, os escravos produziam incessantemente, aquartelados dentro do ‘oikos’, sob intensa disciplina, à moda militar, com direito a uniforme, em alojamentos organizados[3], sem a possibilidade da constituição de família e sob a tutela de um inspetor (villica). Weber demonstra um mercado estável, mas não internacionalizado, e além disso, um mercado que dependia da mão de obra escrava, homens conquistados na guerra, por longas décadas. Por muito o valor de um escravo fora extremamente baixo, no entanto, com o enfraquecimento das conquistas, e com as limitações geográficas do império, o preço do escravo subiu muito, diminuindo a oferta e afetando a produção.
Diante desse novo quadro de escassez de escravos, os proprietários de terras (muitos desses também políticos) acabaram por reorganizar sua produção, permitindo o arrendamento de parte de suas terras e instituindo o modelo serviçal, onde servos teriam seus casarios para viver e produzir para seu próprio sustento, ao mesmo tempo em que prestariam serviços acordados para o proprietário. Outras mudanças se sucederam, como o surgimento de algumas novas relações de trabalho, o pagamento de parte da renda da terra em produtos, não em dinheiro, presença posterior de colonos, entre outros. Com isso, começa um processo de insulamento da produção, enfraquecimento do mercado e por conseguinte, enfraquecimento da cidade, até o seu desaparecimento. Inúmeros impactos fiscais também foram surgindo, o Estado romano já não podia mais saldar com seu profissional exército, e com isso, as propriedades também começaram a sentir a necessidade de se autodefender. Weber considera: “É patente que já então se apresenta à nossa vista o tipo de feudo medieval nesses senhorios do final do Império” (WEBER, 1979, p. 50, grifo do autor).
Numa tentativa de síntese, teríamos, em uma dinâmica mais ou menos ordenada: (a) diminuição da oferta de escravos, (b) necessidade de servos e colonos (casarios), (c) diminuição do excedente, (d) diminuição do comércio, (e) diminuição das cidades, (f) diminuição da arrecadação fiscal e enfraquecimento do exército profissional, (g) surgimento de estruturais fundiárias autônomas (feudos iniciais), com produção e defesa própria, (h) fortalecimento da estrutura familiar entre servos e colonos (camponeses) e (i) ocaso da cultura antiga. É importante ressaltar o caráter não cronológico e dinâmico dessa síntese. Weber (1979) estabelece uma complexa análise, incluindo múltiplos elementos e variáveis, que explica e contextualiza a sua tese sobre o ocaso da cultura antiga. O recurso ideal tipo da linha histórica e da tese são caminhos para uma análise multivariada, complexa, em seus fluxos e refluxos.
Aqui Weber relaciona as condições materiais, configurações econômicas com organização familiar, organização social com questões geográficas, militares, com a noção de honra e cidadania romana, com questões políticas, fiscais, entre outras, relacionando tudo a partir da chave da cultura antiga (que seria o englobar, dentre outros: do direito romano, oratória, música, arte, arquitetura, burocracia, religião, etc.) e seu ocaso.
Há opiniões sobre esse texto de que Weber mantém aqui uma análise materialista, nos moldes marxistas. No entanto, por mais que ele enfatize uma análise sobre as mudanças nas relações entre as forças de produção, Weber não faz uma análise de luta de classes – central no pensamento marxista – e as noções de honra e cidadania são reconhecidas como elementos ideais impeditivos para que os escravos assumissem uma posição cidadã nessas novas configurações socioeconômicas da cultura antiga. Além disso, Weber não utiliza uma gramática marxista e, talvez, ele não dispôs de tempo, registros ou vontade para aprofundar uma análise que passasse das relações econômicas para os meandros da dinâmica social, conflitos, dominações, ideais socialmente compartilhadas e legitimações. A origem do capitalismo e a formação do estado nacional alemão o preocupavam em maior monta, por isso a profundeza analítica presente na mais referencial obra, A ética protestante e o espírito do capitalismo.
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A origem do capitalismo moderno
Weber escreve este texto, precedido por inúmeros outros que antecipam ainda mais outras condições históricas que remontam às estruturas pré-capitalistas. Neste texto, no entanto, tentará analisar quais as condições gerais e prévias para o estabelecimento do capitalismo moderno. Antes, entretanto, busca definir o que chama de época capitalista:
Sem dúvida, só pode-se dizer que toda uma época é tipicamente capitalista quando a satisfação de necessidades se acha, segundo o seu centro de gravidade, orientada de tal maneira que, se imaginamos eliminada esta classe de organização, fica em suspenso a satisfação das necessidades (WEBER, 1968, p. 250).
Para Weber (1968, p. 250) uma condição geral para o capitalismo seria a “contabilidade racional do capital, como norma para todas as grandes empresas lucrativas que se ocupam da satisfação das necessidades cotidianas”. Como condições prévias para essa grande mudança socioeconômica, de formas feudais para o capitalismo, ele elenca: (I) apropriação produtiva de bens materiais de produção (terra, maquinário, etc.) pela iniciativa privada, (II) liberdade mercantil, (III) técnica racional (contabilidade, mecanicidade e previsibilidade), (IV) direito racional, (V) trabalho livre e (VI) comercialização da economia e relação estado-mercado racionalizada. “Em suma: possibilidade de uma orientação exclusiva, na satisfação das necessidades, num sentido mercantil” (WEBER, 1968, p. 251).
Após essas considerações gerais e iniciais, Weber inicia uma análise demasiadamente extensa e multivariada das condições para o capitalismo, bem como de processos gerados por ele e que fazem parte do todo de uma análise adequada para um entendimento de um processo de mudança social tão amplo e dominante. Numa tentativa de esboço geral desses processos, teríamos, inter-relacionados historicamente: processos econômicos e geográficos, processos técnicos e científicos, burocracia, estado racional, ideias capitalistas e ética racional.
Weber percebe as afinidades, fluxos e refluxos que há entre inúmeros processos e condições que possibilitaram o sistema capitalista no ocidente. Além das condições inicialmente citadas, ele inclui uma reflexão sobre a especulação, relacionado ao incremento tecnológico e crescimento desmedido dos “meios de produção” (WEBER, 1968, p. 261). Considera a importância da análise das formas anteriores de relações mercantis, incluindo aí o mercantilismo, refletindo mais detidamente sobre o caso inglês a partir do século XVI. Inclui na análise o melhoramento da comunicação, com o surgimento dos serviços postais, da imprensa, navegação fluvial, uso das estradas e finalmente das ferrovias. Reflete o quanto foi importante para a geração de riquezas na Europa, as aquisições coloniais. Considera os incrementos tecnológicos, uso do ferro, técnicas industriais. Percebe a importância – também vista por Karl Marx – do processo de expropriação das terras comunais, no transformar de lavouras para atividade pecuária, bem como do surgimento da mão de obra livre, do seu disciplinamento. Tenta demonstrar quão importante foram os processos de racionalização da técnica e da economia, envolvendo práticas aprimoradas de contenção de custos, inventos, lei racional das patentes; bem como dos processos de organização racional do trabalho, uma característica capitalista que vigorou no ocidente. Reflete então, sobre o papel e consequência da burocracia e do estado racional, discute a técnica racional, noção de cidadão, existência de cidades, sobre a ética racional da existência. Abrindo então uma discussão sobre a burguesia, sobre o papel das cidades como sedes políticas e econômicas, do comércio e indústria. Política fiscal, política econômica racional e planejada, burocracia profissional, direito racional, entre outros aspectos menores relacionado ao Estado.
Esse enorme e diversificado quadro histórico reafirma a dimensão multivariada do surgimento do capitalismo moderno, contrapondo-se a perspectivas mais unidimensionais e por vezes economicistas desse macro processo de mudança socioeconômica. Fica claro que Weber escreve e analisa no sentido de abarcar o máximo possível de elementos importantes à análise, evitando uma construção socioeconômica e histórica bitolada.
Finalmente, Weber vai tratar do desenvolvimento de ideias capitalistas, explorando um conjunto de sentidos, ideais, éticas que porventura se fixaram e foram determinantes, também, na constituição de um sistema capitalista moderno. Ele conclui: “Decisivamente, o capitalismo surgiu através da empresa permanente e racional. A tudo isso se deve ainda adicionar a ideologia racional, a racionalização da vida, a ética racional na economia.” (WEBER, 1968, p. 310, grifo do autor). E ainda considera: “O resultado é a economia regulada com um determinado campo de ação para o afã de lucro” (WEBER, 1968, p. 311, grifo do autor). Em sua referencial obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber analisa detidamente e de forma extensa aquilo que pincelou no final desse capítulo.
Tais textos de Max Weber podem servir, dentre outros, como referenciais para uma sociologia que pretende buscar entender os processos de mudanças sociais em nível macro. Aqui se exemplifica quão rico e completo uma análise pode ser, mediante a consideração de uma diversidade de fatores e variáveis, e no tecer de uma relação não infrutífera entre condições materiais e ideias, de um foco sobre dados empíricos e no situar relacional dos fatores sociais, econômicas, históricos, geográficos, ideológicos, técnicos, entre outros inúmeros e passíveis de serem elencados.
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Referências
WEBER, Max. As causas sociais do declínio da cultura antiga. In: COHN, Gabriel. Max Weber: sociologia. São Paulo: Ática, 1979. p. 37-57.
WEBER, Max. História geral da economia. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
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Notas
[1] Escrito em 1896 e publicado para o espanhol sob a tradução de Amélia Cohn em 1926 na Revista de Occidente.
[2] Esse texto está como o capítulo quatro do livro História Geral da Economia, publicado pela primeira vez em alemão no ano de 1923.
[3] Os alojamentos contavam com o dormitório, enfermaria, cárcere e oficina. Os escravos eram chamados de “instrumentos falantes” (instrumentum vocale) em quase-semelhança ao gado (instrumentum semivocale).
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Como citar este texto:
SANTOS, Harlon. A análise de macro mudança social: dois exemplos em Max Weber. Fortaleza, CE: 2015. Blog AdObservare. Disponível em: <http://adobservare.com/2015/05/24/a-analise-de-macro-mudanca-social-dois-exemplos-em-max-weber/ >. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
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