Valor, ideologia e cultura no pensamento de Louis Dumont

           A primeira informação para ser levada em conta no intuito de analisar os conceitos de valor, ideologia e cultura em Louis Dumont é a de que necessitamos contextualizá-lo dentro de toda uma tradição antropológica, que é a tradição francesa. Além de sua nacionalidade, muito dos pensamentos de clássicos antropólogos franceses marcam o seu pensamento, como Durkheim e Mauss. A etnologia e antropologia francesa são nitidamente marcadas por uma visão estruturalista que vai posteriormente se consagrar em Lévi-Strauss e influenciando a antropologia de forma global, em especial no Brasil. Sendo assim, precisamos lembrar de situar Dumont dentro do contexto antropológico francês, para assim entender tais conceitos que lhe são tão caro.

            Dumont está diante de uma necessidade de atualizar o pensamento coletivista da antropologia durkheimiana uma vez que ele percebe que a sociedade moderna possui uma característica diferente das sociedades tradicionais, de onde grande parte das etnografias e etnologias saíram. Dumont, a partir de um incurso na Índia, vai perceber que existe um processo histórico que deve ser resgatado para entender como se daria a cultura e os valores nas sociedades modernas, que é diferente daquela que ele observou na hierárquica sociedade indiana. Essa nova apreensão e percepção da diferença carrega consigo tanto uma tentativa teórica, quanto histórica para elaborar uma explicação e ao mesmo tempo traz uma reflexão sobre a postura e limites do antropólogo em estudar sociedades modernas, estando nelas inserido, inaugurando uma reflexão mais apropriada dessa tentativa.

            Os conceito de valor, ideologia e cultura estão em Dumont umbilicalmente unidos. É importante lembrar que Dumont ainda carrega em seus textos uma certa tendência estruturante, organicista e até mesmo funcionalista da vida social, o que foi por muito tempo tônicas do pensamento antropológico francês. Dumont vai contribuir fortemente com uma dimensão operativa dos sistemas de representações, da cultura. Em especial Durkheim e Mauss foram decisivos na descoberta das classificações sociais e das representações coletivas que organizariam a vida social, para eles essas classificações não eram de origem natural ou dadas de uma racionalização deliberada, mas algo presente na sociedade, construído e significado socialmente, porém, nessa percepção, não há uma dimensão operativa, o que vamos perceber em Dumont.

            Nos livros Homo Hierarchicus e no Individualismo é possível perceber que Dumont está num grande esforço de conseguir apresentar as maneiras, gêneses e circunstâncias em que se deram a produção da cultura nesses grupos ou sociedades que por ele foram estudadas. Dumont não está satisfeito e caminha para além da certeza de que existem classificações, símbolos e construções representativas que organizam a vida social. Esse antropólogo está também preocupado em construir um entendimento de como essas classificações se deram e de como elas se reverberam no cotidiano e nas relações sociais entre os indivíduos de diversas sociedades. Todo o esforço de Dumont em encontrar a gênese, de propor uma transição do tradicional para o moderno, destacando o papel do retirante/renunciante, de trazer à tona a ideia de indivíduos-no-mundo e indivíduos-fora-do-mundo, e do destaque que ele faz ao cristianismo como influência para o individualismo, entre outros muitos exemplos, mostram uma preocupação que avança no sentido de operacionalizar e materializar essa descobertas das classificações e representações. Mauss também tentou conceber uma linha explicativa ou tentou descrever um pouco mais profundamente sobre este temas em diversas sociedades, mas seu trabalho, em especial a Noção de Pessoa, do Eu possuía um aspecto ainda mais subjetivo, em Dumont essa abordagem é mais concreta.

            A grande contribuição de Dumont então está na construção de um entendimento mais operativo para a questão das representações e classificações. É neste contexto que podemos entender o seu conceito de valor. Aqui valor seria um conceito que pudesse concretizar um entendimento sobre como uma grande ideia, cultura ou ideologia podem estar sendo operacionalizadas pelos indivíduos, esta operacionalização se dá no entendimento de Dumont, por meio do valor ou valores. Em Dumont a ideia de valor não está de nenhuma forma associada à uma perspectiva essencialista ou ontológica, ou à algo de natureza abstrata. Para Dumont os sistemas de representações ao chegar nos indivíduos e nos grupos sociais, passaram a ter uma carga valorativa, o que se acentua nas sociedades modernas. Para Dumont

valor, designa algo diferente do ser, algo que distinto da verdade científica, que é universal, varia muito com o meio social e até no seio de uma sociedade dada não só com as classes sociais mas também com os diferentes setores de atividade e experiência […] podemos falar dos nossos valores e dos valores delas, ao passo que não o poderíamos fazer do Bem deles e do nosso Bem” (DUMONT, 2000, p. 241).

 Dumont vai mostrar que dentro da estrutura de classificações e representações, forma essa presente em todas as sociedades, vão surgir valores totalmente imbrincados com as ideias, cultura ou ideologia e que por sua vez são eles que organizaram a vida social. Dumont a partir dessa análise e de um resgate histórico, vai conseguir, mais ou menos, dizer alguns dos conteúdos valorativos presentes nas sociedades tradicionais holistas e nas sociedades modernas, e vai inclusive apostar na figura do retirante, “indivíduos-fora-do-mundo que relativizam a vida no mundo e o renunciam” (DUMONT, 2000, p. 38-39) como possível transição do período tradicional para o moderno individualista. Além disso ele vai reafirmar a ideia de grandes sistemas de classificações, que estruturam a vida social a partir dos valores que são socialmente ou individualmente tratados.

Dessa forma podemos então entender o conceito de ideologia em Dumont. Para ele ideologia está muito próximo de cultura, que está muito próximo do que seria uma grande ideia social geral. É importante constatar a perspectiva da qual Dumont trata o conceito de ideologia, uma vez que este termo foi deveras utilizado por muitos outros autores. Dumont se afasta aqui da perspectiva marxista que considera a ideologia como um elemento importante da superestrutura, essa que contribui para manutenção da classe dominante. Ele também se afasta de perspectiva essencialista que colocariam as ideias num plano abstrato, superior e ontológico como fez Platão, Kant e Hegel. Dumont assume que a ideologia é em termos gerais a cultura, ou seja um sistemas de representações e classificações. Nas palavras de Dumont “o sistema de representações (ideias-e-valores) a que chamo para ser breve, ideologia” (DUMON|T, 2000, p. 264). Para ele ideologia seria o grande sistema de representações, as classificações que organizam em primeira instância a vida social e onde estará contida toda uma semiosfera e uma atmosfera de valores. Esse sistema de representações, ou ideologia, são diferentes em cada sociedade, no caso, ele busca uma diferenciação entre as tradicionais e modernas. Assim, os indivíduos, a organização social e suas ações estariam comprometidas e ao mesmo tempo traduzidas dentro do próprio horizonte concebido pela ideologia, que possui uma extrema carga valorativa. Para Roberto Cardoso de Oliveira o conceito de “ideia-valor”, inaugural em Dumont, consegue dá conta de uma dimensão dos sistemas de ideias, mas também de uma carga valorativa que se operacionaliza (OLIVEIRA, 2006, p. 32) nas sociedades tradicionais, e nas modernas de uma forma muito particular, através do indivíduo.

Esses conceitos não se encerram em Dumont de forma simples, ele é detentor de um trabalho que provoca inúmeros questionamentos e produz também diversos desdobramentos, sendo um visão bastante influente dentro da tradição do pensamento francês.

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REFERÊNCIAS

DUMONT, LOUIS. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: RACCO, 2000.

OLIVEIRA, Roberto Oliveira de. O trabalho do antropólogo. 3. ed. São Paulo: Paralelo 15, 2006.

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COMO CITAR ESTE TEXTO

SANTOS, Harlon. Valor, ideologia e cultura no pensamento de Louis Dumont. Fortaleza, CE: 2014. Blog Ad Observare. Disponível em: < http://wp.me/pFciT-7m >. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

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