O texto ‘O Trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir de escrever’ de Roberto Cardoso de Oliveira consagrou-se como um dos grandes textos para uma reflexão sobre o trabalho do cientista social, mais especificamente do antropólogo. Trata-se de uma provocação meta-teórico-metodológica que acaba por instigar aqueles que se debruçam e fazem o trabalho antropológico. Esse texto de Oliveira é um capítulo do livro ‘O Trabalho do Antropólogo’ editado pela Paralelo 15 e Editora Unesp, que em 2006 já estava em sua terceira edição.
Em linha gerais, Oliveira (2006) vai demonstrar neste texto que o olhar, o ouvir e o escrever, a priori atividades tão cotidianas, são, profundamente, práticas indispensáveis para o cientista social, em especial para o antropólogo. Oliveira (2006, p. 31 e 32) conclui que “o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica” e que o “escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar.”. Aqui se tentará resumir analiticamente, a partir da mesma ordem apresentada no texto, um resumo dos três tópicos e sua conclusão.
O olhar
Oliveira (2006) argumenta que o mais importante no início do trabalho antropológico seja a domesticação teórica do olhar do antropólogo. Para isso é necessário que haja um esquema conceitual dentro da mente do antropólogo que lhe possa proporcionar um olhar teórico sobre a realidade. Para Oliveira (2006, p. 19) esse esquema “funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração”. Esse esquema conceitual de que fala Oliveira vai ser, obviamente, constituído por todo o conhecimento e diálogo teórico pelo qual o antropólogo passou, e, também será influenciado pelas motivações, volições e necessidades que em todos os casos constituem-se como inerentes à atividade humana, impossibilitando a pura neutralidade. Esse esquema conceitual, no entanto, ganha um aspecto positivo nessa elaboração de Oliveira, uma vez que é justamente tal arcabouço intelectual que caracterizará o olhar antropológico, diferenciando-o de outros olhares. Um olhar domesticado teoricamente, um olhar sensibilizado da realidade humana-social[1].
O ouvir
Para Oliveira (2006) o olhar não pode ser tomado como uma faculdade humana independente. O antropólogo dispõem de outros sentidos e faculdades que permitem caminhar, mesmo que tropegamente, na estrada do conhecimento. O ouvir constitui-se também como mister neste processo de entendimento e análise da vida humana-social. O antropólogo precisa perceber que o ouvir antropológico é um ouvir especial, um ouvir que reconhece as limitações pesquisador-informante e que busca dirimir os problemas de uma relação não dialógica. Oliveira vai defender uma atitude incessante em busca de um encontro etnográfico, por uma fusão de horizontes e por um diálogo entre iguais, que precisa ser buscado, apesar de impossível em sua plenitude. Oliveira recoloca a importância da observação participante, não somente para a etnologia, mas também para outras áreas da antropologia. Talvez não exista outro método dentro campo antropológico que seja mais adequado para se compreender (Verstehen) a vida humana em seus mais profundos meandros do que a etnografia na sua forma de observação participante, produzindo significações únicas. E mesmo os limites ainda existentes desse método possibilitam antes de tudo uma prática geradora de hipóteses que poderão ser testados por procedimentos nomológicos, ganhando um aspecto mais geral e explicativo, apesar de ainda proposicional e situacional.
Escrever
Para Oliveira (2006) ou RCO para os mais íntimos, o ato de escrever configura-se como a etapa final do trabalho antropológico, ou como a sua segunda parte[2]. Esta etapa carrega consigo uma importância singular e definidora, pois para Oliveira (2006, p. 25) é “no ato de escrever, portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento torna-se tanto ou mais crítica.”. Oliveira vai perceber que esse ato de escrever estará constituído por um imbricando contexto intelectual, moral, político e motivacional, e que é por este ato que o antropólogo tentará conceber uma interpretação ou tradução da cultura nativa ou do campo. Como se já não bastasse, o antropólogo, no ato de escrever, “há de se permitir sempre ao controle dos dados pela comunidade de pares, isto é, pela comunidade profissional” (OLIVEIRA, 2006, p. 27), acrescenta.
O momento de escrever passa por uma nova refração, diferente e/ou complementar daquela do olhar-ouvir. Para Oliveira o processo de textualização é na verdade um processo contextual, ou submetido ao contexto do antropólogo. A ideia de um trabalho antropológico neutro, puro ou objetivo ao extremo perde de vez qualquer espaço no debate.
Oliveira ainda vai pontuar seu olhar sob três possíveis correntes de produção monográfica que hoje perfazem a antropologia, são essas a: (I) monografia clássica, fragmentadora ou separadora; (II) as modernas, totalizantes no sentido de conceber a cultura como um todo; (III) e a pós-moderna ou experimental, com seu caráter intimista. O que serve de base para discutir as práticas “meta-teóricas em processo de padronização” e colocando em jogo conceitos como o de intersubjetividade e o de horizonte teórico para dentro do próprio fazer antropologia.
Considerações outras
Oliveira (2006) reafirma a importância dos atos de olhar, ouvir, escrever e recoloca-os como atos que estão dentro de uma sistema de entendimento da disciplina. Oliveira (2006, p. 32) afirma que “esses atos estão previamente comprometidos com o próprio horizonte da disciplina, em que olhar, ouvir e escrever estão desde sempre sintonizados com o sistema de ideia e valores que são próprios da disciplina”. Ele vai tomar um conceito de Louis Dumont, o de ideia-valor, que segundo ele é capaz, em uma única expressão, de trazer consigo uma carga valorativa extremamente grande e real. Para Oliveira há pelo menos duas ideias-valor na antropologia que seriam a (I) relativização e a (II) observação participante. Para o autor “relativizar é constituinte do próprio conhecimento antropológico” (OLIVEIRA, 2006, p. 33), assim, não haveria antropologia sem o confronto intercultural, que ainda nos marca mesmo nesses tempos de tão plurais e de avançados estudos. A observação participante também faz-se indispensável dentro desse projeto uma vez que o objetivo é compreender (Verstehen) o homem em suas relações da forma mais profunda possível. Não há como dar conta de um fenômeno tão complexo como a vida humana em suas relações sociais sem se utilizar de um instrumento tão complexo quanto. Por isso a importância e a singularidade do olhar, do ouvir e do escrever, instrumentos complexos e intrínsecos à humanidade, e sob uma forma especial ao antropólogo.
Notas
[1] Cardoso apresenta a título de ilustração um exemplo imagético onde um antropólogo adentra numa residência indígena e consegue, a partir de elementos e objetos bem comuns, elaborar toda uma análise antropológica e contextual. Ele demonstra como se opera esse esquema conceitual sobre o olhar do antropólogo (cf páginas 19 e 20).
[2] Ele divide o trabalho antropológico em duas partes: (I) o olhar e o ouvir, e (II) o escrever. Faz isso a partir de uma proposta de Clifford Geertz (‘Trabalhos e vidas: o antropólogo como autor’) que qualifica o trabalho do antropólogo em being there e em being here, ou seja, há (I) a etapa em que se estar no campo percebendo, olhando e ouvindo, e (II) e a etapa em que se estar no escritório escrevendo.
Referência
OLIVEIRA, Roberto Oliveira de. O trabalho do antropólogo. 3. ed. São Paulo: Paralelo 15, 2006. Capítulo 01.
Como citar este texto:
SANTOS, Harlon Romariz Rabelo. Olhar, ouvir e escrever: eis o o trabalho do antropólogo para Roberto Cardoso de Oliveira. [S.l]: 2014. Blog Observare. Disponível em: https://observare.slg.br/trabalho-do-antropologo-olhar-ouvir-escrever/. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
Muito bom.