por Nilton Nascimento
Apesar da possibilidade de serem lidos isoladamente, vale notar que os ensaios que compõem o respectivo livro e, em especial, os três aqui fichados, participam de um movimento heurístico maior, no qual, os dois primeiros são preâmbulo indispensável para abordagem que Renato Ortiz dará a questão dos jogos de poder que mobilizam diferentes grupos e o próprio Estado em torno da definição e dos usos legítimos do que seria “cultura popular”, fator de promoção de uma (in)certa “identidade” nacional. Em Da raça a cultura, Ortiz aponta para o quadro sócio-histórico em que a categoria “cultura” toma o lugar da “raça” como leitmotiv de intelectuais brasileiros da primeira metade do século 20 acossados por pensar os entraves a modernização sem reportar-se a teorias de degenerescência racial. Da cultura desalienada a cultura popular, nosso autor expõe a dinâmica com que um grupo em específico empreende um esforço por dotar de sentido o termo “cultura popular” para, por conseguinte, acioná-lo como carro-chefe de ação política. Por último, Estado autoritário e cultura traz explicita uma coleção de circunstancias que denotam como mesmo o Estado ditatorial percebe na manipulação dos meios de produção e difusão cultural a possibilidade de forjar uma identificação na diversidade, a ideia de cultura popular fornecendo o cimento para isso.
Antes porém da cultura ser alçada a móvel de identificação nacional, as teorias raciais europeias eram que forneciam as categorias a partir das quais a intelectualidade brasileira, composta em grande parte por médicos e advogados, pensava o Ser brasileiro. Ortiz permite entrever em Da raça a cultura: a mestiçagem e o nacional como a questão de uma certa brasilidade é abordada incialmente no Brasil a partir do final do séc. 19. O chamado “Brasil-cadinho”, segundo o autor, acompanha grande parte da produção científica e romântica brasileira da época. O branco, descendente de europeus, aclimatasse ao território nacional graças ao índio. Adquire costumes, aprende a alimentar-se, civiliza o “selvagem”, pode conviver com ele, mais do que isso, relaciona-se com ele. O brasileiro de fato, alçado a preocupação quase-acadêmica, é mestiço do branco com o índio. Único capaz de desbravar os recônditos do Brasil sertanejo, porém, pelo seu próprio ser, empecilho a modernização. A questão da identidade já está posta então nesses termos nas últimas décadas do referido século. Problema: onde está o negro? Dito de outro modo, que centenas de anos e milhões de pessoas precisavam ser obliterados para que essa primeira tentativa de abarcar o ser nacional tivesse êxito? Não haveria como. Algo mais abrangente se gestou, Ortiz indica o que.
A “fábula das três raças”, a famosa “democracia racial”, é o que surge então. Ortiz chamará este movimento “mito das três raças”. Mito porque, de acordo com o mesmo autor, inverificável em sua eternidade linguageira, porém, elemento estruturante e estruturado de uma passagem econômica e política brasileira, a saber, passagem do escravismo para o capitalismo, da monarquia para república (p.38). A apoteose das três raças pacificava, em alguma medida, o imaginário dos intelectuais nacionais do início do séc. 20 em relação a que povo é este que se vê nas ruas, entretanto, não sem rememorar e recair na “inaptidão natural do mestiço para racionalidade” como explicação para o atraso da modernidade aqui. A raça, como medida para o nacional, não pode exceder o discurso sem que o “branqueamento” da sociedade apareça como única via de progresso (p.39). A modernização acontece apesar de tudo, e o Estado da Revolução 30 não quer estar alheio a isso, indica Ortiz. A mestiçagem, pela forma como até então era tratada, não poderia servir de liga, tampouco de viés promotor de desenvolvimento social. Era preciso pôr do avesso tudo que havia se propagado até ali em termos raciais, a mestiçagem continuaria fornecendo a categoria para se pensar a unidade na diversidade, porém só quando distancia-se das ambiguidades do biológico para dar vez a um mundo simbólico de experiências compartilhadas, a cultura.
Gilberto Freyre é quem promoveria por suas obras, segundo Ortiz, esta ressignificação da abordagem legada a questão do intercruzamento das três raças. Fiel promotor do culturalismo boasiano, em Freyre supostas disposições biológicas inatas não dizem respeito ao desenvolvimento particular de uma cultura. Para Franz Boas a apreensão simbólica que certo povo dedica a realidade não pode ser escalonada como evidencia de um movimento evolutivo biológico humano. Ao contrário. A cultura deve ser pensada, para este autor, per si, apenas relacionada ao contexto histórico específico de relações objetivas entre humanos e outros humanos, e entre humanos e o meio, em que surge. Disto, Ortiz entende que Freyre encarna um certo projeto intelectual tradicional e conservador, ao passo que também o revoluciona. Freyre obtém tal êxito em emitir a “carteira de identidade” do brasileiro (p.42) que cega o Estado novo para a contradição entre o louvor do que é tradicional, rústico, nostálgico, e os planos estatais modernizantes em voga.
O que quero mostrar é que a operação Casa Grande e Senzala possibilita enfrentar a questão nacional em novos termos. Daí eu ter afirmado que o sucesso da obra se encontra também fora dela. Ao permitir ao brasileiro se pensar positivamente a si próprio, tem-se que as oposições entre um pesador tradicional e um Estado novo não são imediatamente reconhecidas como tal, e são harmonizadas na unicidade da identidade nacional. (p.43)
Em seguida a esta exposição do problema do trânsito da raça à cultura como categoria promotora de uma (in)certa identidade nacional, Ortiz passa, em Da cultura desalienada a cultura popular, ao exame crítico a respeito de como o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE apropria-se da categoria “cultura popular” para torna-la parte do arcabouço do seu projeto político. Nosso autor exprime primeiramente o viés teórico que orientou a abordagem do CPC questão da cultura. Marx e Lukács, acompanhados dos conceitos de ideologia e alienação, surgem então dentro do quadro de apreensão da realidade de intelectuais como Ferreira Gullar. Quadro no qual o real está para o que é encoberto. Onde a aparência jamais está de acordo com o que é essencial, se não as custas de tonar inútil toda atividade científica, parafraseando Marx. Neste sentido, o que é científico confunde-se com que se pode chamar “missão” política, é preciso “retirar os véus” que iludem a maioria. Para o CPC a arte política de esquerda o faria. Mas como? Pergunta que mobilizou grande parte dos intelectuais marxistas que concordaram com as assertivas acima postas.
Ortiz demonstra como o CPC se propõe a realizar aquele projeto de desalienação das massas. O primeiro movimento neste sentido, de acordo com Ortiz, é o afastamento da noção de cultura da de folclore. Vinculação esta que se estabelecia pela tríade regionalismo/tradição/popular, que obstaria, ao apontar sempre para o passado e para conservação, qualquer ideia de progresso. Cultura estaria então para o costume, para a acomodação intermitente e multifacetada ante os meios mais adversos. Gilberto Freyre é novamente citado por nosso autor como representante destas ideias (p.71). Ocorre que, a primeira vista, por razões óbvias, a questão da cultura posta nestes termos não interessava ao projeto revolucionário do CPC. O povo que se distrai em seus festejos regionais está alienado ainda do movimento histórico que aponta para tomada do poder pelo proletariado e para o fim do sofrimento deste mesmo povo.
Mas de que forma convencer/iluminar a todos a respeito da última afirmação acima? A ação do intelectual assume importância aqui. Ele, o intelectual de esquerda, Ortiz destaca as ideias de Ferreira Gullar, percebe na arte/cultura engajada o instrumento da revolução, primeiramente, da consciência do povo. Cultura, sagazmente define Ortiz, se torna verbo. É ação transformativa, desalienante.
O termo se reveste portanto de uma nova conotação, significa sobretudo função política dirigida em relação ao povo. Quando os agentes do CPC se referem as obras da “cultura popular”, eles não se reportam às manifestações populares no sentido tradicional, mas sim às atividades realizadas pelos centros de cultura. Pode-se desta forma falar em “militantes da cultura popular”, posto que a noção de substantivo se transforma em verbo. (p.72)
Problema teórico apontado por Ortiz: o intelectual é sempre alienígena, promotor estrangeiro da conscientização, ele leva a cultura à massa. Diferentemente para Gramsci, por exemplo, nele o intelectual é “orgânico”, emerge das massas, pode falar de seus problemas e aspirações com propriedade por partilhar dos mesmos (p.73).
Ortiz detém-se ainda no pensamento de Ferreira Gullar para tratar da questão da ideologia. Antes, porém, só reforça o quanto o conceito de cultura popular do CPC se estabelece como contraposição a “cultura alienada”. Esta última, como já referido acima, apenas elemento lúdico, “ingênua”, desprovido de qualquer qualidade artística, retardatária… (p.74-75). Este reforço é importante para contradição que Ortiz aponta no trato que Gullar dará a problemática do nacionalismo.
Falando contra o imperialismo o CPC não poderia passar ao largo do problema a identidade nacional. E aqui começa o paradoxo. Ao passo que relegam a arte popular a uma “falsa consciência”, intelectuais como Ferreira Gullar precisam desta “miscelânea rude e pseudoartística de cunho popular” para argumentar por certa originalidade, essência, do ser brasileiro.
Com a emergência da problemática do imperialismo cultural, tem-se que questão dos fatos folclóricos enquanto ‘falsidade’ se transmuta em estado de ‘veracidade’ nacional. O pensamento desloca-se do núcleo da ‘falsa cultura’ para centralizar-se sobre um novo polo: o da independência nacional; delimita-se assim uma esfera da ‘autenticidade’ nacional que naturalmente se manifesta na memória popular regional. (p.76)
A partir de Gramsci, Ortiz aponta a fragilidade e limitação teórico-prática da abordagem que o CPC dedica as questões da ideologia, alienação e cultura. Nosso autor enseja aqui o que discutirá no ensaio seguinte. Para Ortiz, pensar a cultura sob o viés da alienação, segundo a medida de uma “consciência verídica” que se realizava em uns e não em outros, obstava que se percebe-se as relações de força que permeiam invariavelmente as relações sociais. Nesse sentido, o conceito de hegemonia de Gramsci forneceria a chave heurística para compreensão de um momento histórico do Brasil em que, no jogo de legitimação/manutenção de um poder governamental arbitrariamente instituído, a categoria “cultura popular” é mais uma vez mobilizada, dotada de um sentido particular, apontando para fins estratégicos. Cultura agora é projeto conservador. Elemento chave para um plano vertical de unificação/controle social. O período é anos 60, quando começa a vislumbrar-se aqui algo como uma indústria cultural. A pergunta que instiga Ortiz é: “em que medida o desenvolvimento de uma indústria cultural não corresponderia ao processo de hegemonia ideológica das classes dominantes? ” (p.77).
A discussão sobre o papel do Estado na estruturação dos meios de difusão cultural no Brasil é requisito indispensável a análise do campo da cultura, de acordo com Ortiz. Em Estado autoritário e cultura está posto que os efeitos da modernização brasileira não só coincidem com o período ditatorial como, no que tange a interligação do território nacional por meio dos aparelhos de comunicação, é mesmo promovido intencionalmente pelo Estado autoritário. Era preciso alcançar uma população espacial econômico e culturalmente diversa. Alcançar para controlar. A rede criada pelo mercado de bens culturais estabelecia-se como via estatal de promoção de uma “identificação na diferença”. Isto é, permitia pensar em termos nacionais.
O período é 64-80 quando o crescimento da classe média e o aumento da população dos grandes centros urbanos destacam-se como critérios fundamentais para estruturação do mercado de bens simbólicos brasileiro (p.83). As grandes empresas do ramo de comunicação de massa estabelecem-se também neste momento. O volume do mercado consumidor dá um salto, proporcionalmente falando. Apenas um dado para ilustrar os tantos outros que traz Ortiz (p.84), é, por exemplo, que em 1976 o Brasil já é o sexto mercado mundial em publicidade.
A cultura é oficialmente dimensão estratégica da tentativa de expansão da influência estatal na sociedade. O quadro apresentado por Ortiz na página 86 é contundente. O ano de 1975 recebe destaque, acumula a criação da FUNARTE, a ampliação das atribuições da EMBRAFILME, além da publicação do primeiro Plano Nacional de Cultura, entre outros eventos importantes. É este mesmo Estado que está na origem da implementação da infraestrutura tecnológica para a difusão do acesso a televisão no Brasil. O que permite abrir o parêntese para assinalar a direta relação Estado e iniciativa privada. O Estado aparelha, a inciativa privada apropria-se. Mas não sem reservas. O argumento de Ortiz caminhará no sentido de demonstrar como é uma certa ideologia de segurança nacional o motor desta atenção especial dedicada a cultura.
Poder-se-ia sentir até aqui a falta de referências a problemática da repressão ideológica. Ortiz, entretanto destaca:
Durante o período 64-80 a censura não se define tanto pelo veto a todo e qualquer produto cultural, mas age primeiro como repressão seletiva que impossibilita a emergência de determinados tipos de pensamento ou de obras artísticas. São censuradas as peças teatrais, os filmes, os livros, mas não o teatro, o cinema, ou a indústria editorial. O ato repressor atinge a especificidade da obra mas não a generalidade da sua produção. O movimento cultural pós-64 se caracteriza por dois momentos que não são na verdade contraditórios; por um lado ele é um período da história onde mais são produzidos e difundidos os bens culturais, por outro ele se define por repressão ideológica e política intensa.
Para Ortiz está patente a preocupação do governo militar com a questão da cultura desde os primeiros anos do golpe. Já em 1965 institui-se uma comissão para elaborara as diretrizes do plano nacional de cultura que trabalhando em parceria com o MEC proporá a criação do Conselho Federal de Cultura (CFC), fundado em 1966. E é na análise do discurso do CFC que Ortiz buscará demonstrar o processo de legitimação de uma certa noção de cultura brasileira.
E a ideologia do CFC é de um Brasil plural. A questão da mestiçagem é central. Como já dito anteriormente, a mestiçagem, desvencilhada do ranço raciológico, abre para o argumento de um povo que traz sintetizadas em sua identidade as identidades de tantos outros povos. Ortiz percebe, no entanto, que ideia de “unidade na diversidade” tem acoplada uma “ideologia da harmonia”, cara aos escritos de Gilberto Freyre, onde as partes não concorrem senão para o equilíbrio. O mestiço, brasileiro por excelência, é um todo multifacetado, que pacifica em seu próprio ser uma série de culturas diferentes e mesmo antagônicas. É uma existência democrática, se nos é permitido o exagero. Exagero que entretanto encontra eco no truísmo da “democracia racial” brasileira. Freyre, segundo Ortiz, é o representante máximo destas ideias (p. 93-95). Se há encaixe numa relação de desigualdade tão brutal como o escravismo, porque seria absurdo pensar num projeto de democracia empreendido por um governo antidemocrático?
Referências
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Como citar este texto:
NASCIMENTO, Nilton. Resumo dos ensaios: ‘Da raça a cultura’, ‘Da cultura desalienada a cultura popular’ e ‘Estado autoritário e cultura’, de Renato Ortiz em “Cultura brasileira e identidade nacional”. Blog Observare: 2017. Disponível em: https://observare.slg.br/resumo-dos-ensaios-ortiz. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
gilberto freyre é racista, nazista e governista conservador.