Por Alef Lima
O relacionamento professor-aluno é de longe algo que se faz em um intenso fluxo de relações, algumas refletem posições de poder e autoridade, outras remetem a uma amabilidade inesperada. Nesse aspecto, é importante indagar sobre a função da docência frente às demandas afetivas que os discentes trazem. Não apenas em um sentido pessoal ou pedagógico, a questão que se passa no filme O sabor do grão (1986) é também elaborada do ponto de vista da sexualidade. Em certo sentido, o sexual, apesar de não ser vinculado necessariamente ao amor, relaciona-se com um pedido de ser amado.
A narrativa do filme é centrada em Lorenzo um jovem professor de 20 anos, recém-formado e que mantém um caso avulso com uma mulher (des)conhecida que é noiva de outro. Na outra ponta temos Duilio, um menino de 12 anos que faz com que seu desejo instigue Lorenzo a dar-se conta de outra parte de sua própria sexualidade. Para realizar essa reflexão, utilizo os referenciais da abordagem sociológica sem abrir mão das considerações psicanalíticas que fazem com que a temática do amor seja vislumbrada acompanhada da incidência do desejo, especificamente, sua errância no campo da sexualidade e na idealização do outro.
A questão que transpassa toda a história é justamente a posição de Lorenzo em relação ao desejo de Duilio. O contexto do filme é uma zona rural italiana, em que se pese, portanto as relações sociais provinciais. Esse cenário apresenta-se permeado pelas pequenas comunidades agrárias que orbitam o entorno da escola onde o jovem professor atua. Em uma leitura preliminar poderíamos supor que a “fascinação” de Duilio é exclusivamente uma admiração por aquilo que o professor apresenta de diferenciado ao seu cotidiano social ao qual se encontra submetido. Mas, se é tão somente admiração, como ganha contornos erotizados? Ou de antemão, o que nos interessa eticamente, Lorenzo atende ou não atende a demanda de amor que é posta sobre ele, na figura de objeto amado, objeto idealizado?
A complexidade trazida pelo filme é justamente pensar a saída, eticamente possível, frente aquilo que se coloca como amor e dá-se a ver enquanto ato (propriamente sexual). Lorenzo acompanha a vida escolar de seus alunos de perto e aproxima-se cada vez mais deles e de sua realidade, em especial Duilio, pois é justamente ele que o autoriza a sentir-se amado. O momento que o jovem professor percebe-se autorizado pelo amor de Duilio, ele acaba posicionando-se do ponto de vista do objeto amado. Assim:
Amar coloca em dois lugares: sujeito (amante) e objeto (amado). Aquele sobre o qual se abate a experiência de que alguma coisa falta, mesmo não sabendo o que é, ocupa o lugar de amante. Aquele que, mesmo não sabendo o que tem, sabe que tem alguma coisa que o torna especial ocupa o lugar de amado. O paradoxo do amor reside no fato de que o que falta ao amante é precisamente o que o amado não tem. (FERREIRA, 2004, p. 10)
Outro paradoxo que se coloca é saber-se da docência e de sua intencionalidade: ensinar, e do outro, a possibilidade de maturidade e consentimento que implicam as idades cronológicas do ponto de vista das moralidades vigentes. A disparidade de idades e a posição docente incidem como interditos socialmente poderosos e que tem como meta barrar qualquer possibilidade sexual mesma de acontecer. Entretanto não é nisso que encerra a questão, pelo fato de ser objeto de amor, sentindo-se amado, Lorenzo faz do desejo de Duilio algo mais que não apenas uma admiração ou amizade sincera. Correspondendo, mesmo sem notar, à paixão de seu aluno, Lorenzo toca na sua própria sexualidade, e reorienta por assim dizer, o escopo de seu erotismo, presencia-se nele o vislumbre, parcial, da sua homossexualidade. Por esse ângulo a incidência do desejo de Duilio faz com que Lorenzo deseje.
É fato que a afetividade é eivada de tantos meandros que sua compleição não pode ser apreciada unicamente pelo inconsciente, ou pela moralidade social. O que se percebe é que sendo importante pensar a posição do professor como objeto de amor, não apenas na exclusão de sua impossibilidade, ou na correspondência eufórica de ser amado. E sim situando essa demanda em um contexto de profissionalidade que se pode refletir o lugar do professor na sua função, e também na produção de sua própria sexualidade. Os alunos, quaisquer que sejam eles, despertarão em nós afetos que por vezes escaparão a uma interpretação “racionalizada”. Segundo a socióloga Anália Torres, verifica-se que:
As relações sociais têm múltiplas dimensões – uma das dimensões é a dimensão afectiva. Ela opera em todos os domínios da vida social – trabalho e profissão, família, lazer. E podemos então dizer que um dos lugares privilegiados ou operador simbólico fundamental das relações afectivas são as relações amorosas – nelas estão inscritos diversos níveis da realidade […] (TORRES, 1987, p. 22)
Acrescentaria à percepção da autora que como operação simbólica o campo da educação é cingido por diferentes posições. Um professor repressor pode implicar disciplina e mesmo boas notas, mas dificilmente consegue angariar a sua prática uma leveza que melhor significa a sua intencionalidade educativa, ou, um professor displicente e pouco afeito às regras pode até reger satisfatoriamente, no entanto, faz com que seus alunos percam a noção de responsabilidade e discernimento frente aos regramentos e mesmo com seus hábitos de estudo. Dizendo de outro modo, educar, como falava Freud é da ordem do impossível, pois sua ação não se completa, não se fecha, trata-se de sujeitos desejantes (alunos e professores). A intencionalidade educativa é um dos fatores que torna o impossível praticável, e esse aspecto coloca em articulação a aprendizagem, a afetividade, e o desejo (ALMEIDA, 1993). Cabe ao docente dar-se conta do seu desejo também na real posição que ocupa em relação ao desejo do discente. De antemão, é apenas a percepção de um amor transferencial e de sua potência que o professor pode fazer essa indagação: Sabendo-me depositário do desejo do outro, o que fazer com o desejo que é me conferido? As respostas têm múltiplos sentidos, mas, qualquer que seja, tenhamos em mente que pagamos o preço pela realização do desejo.
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Referências
ALMEIDA, Sandra Francesca Conte de. O lugar da afetividade e do desejo na relação ensinar-aprender. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v.1, n.1, 1993, p. 1-12.
FERREIRA, Nadiá P. A teoria do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
MILLER, Jacques-Alain. Lacan, professor de desejo. (Entrevista ao Le point, publicada originalmente em 06/06/2013), tradução Vera Avellar Ribeiro. Opção Lacaniana Online, n.12, ano 4, nov. 2013, p.1-9.
TORRES, Anália. Amores e desamores – para uma análise sociológica das relações afectivas. Comunicação apresentada nas VI Jornadas de Comunicação e Cultura realizadas no ISCTE em 1987.
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COMO CITAR ESTE TEXTO:
LIMA, Alef de Oliveira. A incidência do desejo na relação professor-aluno: apreciações sobre o filme “O sabor do grão”. Fortaleza, CE: 2016. Blog Ad Observare. Disponível em: <http://adobservare.com/2016/01/31/o-sabor-do-grao/>. Acesso em: dia mês abreviado. ano.