por Alef Lima
“Decifra-me ou te devoro”, diz a esfinge se interpondo entre o viajante e o caminho. O que mais apavora não é o enigma a ser decifrado, é o verbo devorar que ecoa calmo pela boca do monstro mitológico. A esfinge é uma alteridade irreconhecida e a ambigüidade que seu corpo provoca, é o que se vislumbra na viagem, ou melhor, no deslocar-se defendido por Lévi-Strauss. Sendo o interposto a figura mítica é outro representado, como é metade humana precisa digerir o estrangeiro, fazê-lo seu correspondente no ulterior de sua alteridade. Uma antropofagia semelhante comete o antropólogo em suas descrições do nativo, na autoridade potencial da inteligibilidade antropológica.
Claro que o exposto sobre a criatura mítica é apenas uma metáfora e serve para se dizer algo de maneira indireta. A metáfora é uma alteração de sentido resultada de uma similitude entre dois termos. No tocante a antropologia, trata-se de um intento reflexivo alçado para além do já conhecido: debruçar-se aqui sobre a decifração das culturas, a textualidade da escrita etnográfica e as propostas metaetnográficas advindos de uma reproblematização dos pressupostos epistemológicos da ciência antropológica. Considerando-os na égide das fronteiras entre história e literatura em conjunto com a reinvenção dos conceitos do seu devir tais como: cultura e etnografia.
Uma miscelânea de autores é possível de ser pensada em seus préstimos originais para com essa antropologia que dobrar-se sobre si. No entanto esse pensamento é pretendido pela narrativa de sua gênese e do seu fazer revisitado em outros ângulos, quase uma antropoanálise do que é e do que se tem feito com e por a antropologia. Os intelectuais instalados nessa chamada metaetnografia que tenta sair de si e olhar-se no espelho, são comumente questionadores de diversos âmbitos variando desde autoridade sob a experiência etnográfica, a cultura como texto, a etnografia como escrita até a formulação de uma hermenêutica dos significados.
No que diz respeito a uma revisão crítica da produção de monografias antropológicas. O trabalho de James Clifford em A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX merece ser compreendido no seu interior para dar vazão a uma linha argumentativa aparentemente desorientada do fazer antropológico, mas que restabelece quase uma visão sobre o refazer possível da antropologia. Para tal procedimento histórico e analítico o autor reinsere as dimensões políticas e epistemológicas das etnografias.
O esforço é remontar em termos históricos o caráter de escrita da etnografia – recontextualizando-a dentro do colonialismo, pós-colonialismo e modernismo literário europeu. Estipula-se ver o que existe do contexto no fazer do antropólogo. O metafórico da escrita etnográfica é compreendê-la pela por sua duplicidade de significados – políticos e literários e na tensão dos movimentos de figuração do outro.
Multiplicidade é o que carrega a escrita da etnografia e outra vez um deslocar-se, mas não o é enquanto apenas a saída que professou Lévi-Strauss no apogeu de sua admiração por Rousseau. O deslocar-se é um tripé que James Clifford retoma em sua intensidade: uma dinâmica que para sair é preciso reconhecer que estar depois o próprio movimento da distância e por fim o signo da volta implícito em qualquer partida. A autoridade que o historiador da antropologia nos fala, está instalada como elemento constitutivo e estruturante do texto da etnografia. Essa questão é permeada pelas formas de montagem da textualidade das monografias que vão de Malinowski a Clifford Geertz, e esse último será com certeza melhor debatido.
O que nos chama a atenção são os modelos de autoridades desenvolvidos em cima das representações do outro, por sua vez mergulhadas na tradução da experiência vivencial dos etnógrafos – desconfigurada ou reconfigurada em texto de base empírica das elaborações teóricas. O primeiro ponto é a simbiose do etnógrafo – coletor de dados empíricos e informações gerais com o antropólogo catedrático das grandes interpretações e sistemas teóricos. Essa junção fundada no século XX reformulou extensivamente a produção da antropologia. A profissionalização acadêmica girou em torno então desse amalgama e através da legitimidade experiencial que confere ao testemunho etnográfico de transcrição da vivência proximal com a vida nativa.
A ênfase dada à observação participante defendida por Malinowski que se apodera dos imponderáveis e por sua vez redefini as bases empíricas da teoria, consequentemente ver a cultura como um todo amplo funcional e complexo, sendo que a reconstituição histórica é tirada de cena através da alegação da demanda de sincronia. A textualidade promovida daí é uma fala interior de quem conviveu – uma descrição e narração situada não no gabinete, mas na vida do nativo. Um texto da experiência diária como se fosse à mitologia do conhecimento no âmago do desconhecido, porém será que existe o núcleo do desconhecido?
A dúvida implantada é justamente da antropologia interpretativa que propõe Clifford Geertz, não se dirigi a descoberta ao encontro do sentido do nativo. O que faz o antropólogo é entender a racionalização e/ou elaboração que o nativo dar sobre o suposto significado público que tem sua cultura. A interpretação não é uma tentativa de fidelidade com um puro significado e sim a ponte do fragmento plausível do significado que é elaborado pelo outro e ainda será hermeneuticamente traduzidos aos nossos pares. O texto é representacional – a sensibilidade é movida no interpretar sobre o simples descrever, portanto recontextualizar o texto e a subjetividade por meio do sentido. A construção de uma cartografia do sentido pontuada pela interferência amplificada do etnógrafo. Uma volta a Weber e a compreensão das teias e nós que se estruturam na vida coletiva. Agora a relação dialógica entre nativo e observador é posta na mesa e o texto é uma co-construção sendo que a autoridade dialógica não olhava para os elementos de sua textualização mesmo com duas vozes, o texto é único, é pelo menos então uma unidade.
Por fim, James Clifford apresenta a multivocalidade da autoridade polifônica, a costura, da costura dos sentidos. As várias vozes são impressas no texto, fala-se na heteroglossia moldada na alternativa da pluralidade utópica. Porém, surge a redundância: o plural não é uma única folha de agradecimentos na produção textual. Fazer uma customização de sons não é provocar uma música, nem modular belos compassos rítmicos. O resenhado por Clifford foi não só os modos de autoridade, mas também a emergente experiência que não escapa à textualização.
Toda a dimensão da experiência etnográfica textualizada como suposto de uma observação descritiva é abalada pela interferência de quem é o etnógrafo – e como ele descreve o desconhecido. Logo, o caráter de cientificidade da antropologia passaria pela densidade orientada de sua descrição; e se o antropólogo escreve textos, ele é um autor no sentido estrito do termo, quer dizer por possuir um estilo e uma autoridade ele assim está emerso num conjunto de construções escritas que formam sua obra. Sendo assim, o que ele faz não seria uma ficção? Ele é um escritor como qualquer outro?
Clifford Geertz, no seu livro A interpretação das culturas nos entrelaça com a descrição densa de múltiplos contextos de implicação da etnografia situando os significantes da análise antropológica à uma hermenêutica dos significados imersos na cultura como um texto: um “documento público” e que contém estruturas superpostas de significados. A função do etnógrafo é ensaiar plausivelmente seus sentidos; esses significados são escritos em signos de atuação, relevância, e ação simbólica. O antropólogo descreve a densidade dos hieróglifos na inferência de uma tradução mínima e parcial.
Para além dessa ciência hermenêutica da espessa a análise antropológica, o antropólogo americano segue por um debate mais complexo. No livro Vidas e obras: o antropólogo como autor, ele revisa a etnografia por seu caráter estilístico, compondo uma revisão dos estilos de vários autores como: Ruth Benedict, Evans-Pritchard e outros.
Na realização desse empreendimento, Geertz teria que compreender a etnografia como um texto ficcional enquanto um romance, onde se elabora lugares, personagens e suas características psicológicas e o clímax que ocasiona a erupção final, quando os elementos se aglutinam no fim desejado ou não. Então o etnógrafo em sua romantização literária escreve enquanto um escritor qualquer ou como escriba do Egito antigo?
Citando Roland Barthes (que também é citado por Geertz na referida obra acima), em sua coletânea de artigos Verdade e crítica, um autor não é mesmo que um escritor:
O escritor realiza uma função, o escrevente uma atividade, eis o que a gramática já nos ensina ao opor justamente o substantivo de um ao verbo (transitivo) do outro. Não que o escritor seja uma pura essência: ele age, mas sua ação é imanente ao objeto, ela se exerce paradoxalmente sobre seu próprio instrumento: a linguagem; o escritor é aquele que trabalha sua palavra (mesmo se é inspirado) e se absorve funcionalmente nesse trabalho. (BARTHES, 1982, p.33)[1]Barthes finaliza de modo bem sutil a diferença entre um autor e o escritor. Junto com sua sentença podemos relembrar que o pressuposto de um autor remetido por Geertz é apenas uma das perspectivas da condição do antropólogo. Quem enxerga de maneira amplificada a inventividade da antropologia é o também americano Roy Wagner.
Na obra A invenção da cultura, Wagner dialoga com metaetnografia no campo da metáfora da criatividade dialética que urge na antropologia contemporânea. A intenção é mediar às aspirações simbólicas e as situações culturais que formulam/inventam a cultura, enfatizando a positividade da análise das culturas nos temos potenciais de uma objetividade relativa. É uma simbolização exterior e reconhecida como tal da relação dialética que existe entre sujeito e objeto. A subjetivação estabelecida por ele não é pontuada pela falta ou negatividade de possibilitar a etnografia uma explanação efetiva da cultura dos nativos e de que maneira se estrutura seus meios de vida e de sentido. Talvez seja uma ideação, a antropologia anda numa corda bamba entre o fenômeno do homem traduzido muito mais pela diferença que nos distingue do que a universalidade de nossa condição – trata-se de ver a centralidade das nossas invenções.
Existe a impossibilidade de apreender a cultura, primeiro é o fato de ser ela tal como um conceito, uma categoria de conteúdos prontamente organizados do ponto de vista semântico (do sentido). O etnógrafo elabora de maneira a incorporar e externar sua cultura pelo choque cultural que a torna visível somente diante da invenção do outro. O pilar da dinâmica criativa é a autopercepção do fazer antropológico – sendo um conjunto de impressões tingidas por conteúdos significantes. Assim o que se espera da antropologia não é qualquer ficção, segundo ele: “uma antropologia que jamais ultrapasse os limiares de suas próprias convenções, que desdenhe investir sua imaginação num mundo de experiência, sempre haverá de permanecer mais uma ideologia que uma ciência” (WAGNER, 2013, p.29).
Os fragmentos dos grandes debates exposto aqui e que se desenrolam dentro da antropologia contemporânea são plenos de figuras de linguagem, novas gramáticas de possibilidades e dimensões inexploradas. Arrisco-me a dizer que a conferência de temáticas explicitadas nesses textos não é uma pressão monolítica gerada pelo afã de destruição dos primeiros paradigmas da antropologia. É na sua intenção uma metamorfose poética – abrem-se agora asas bem mais coloridas, fortificadas por um diálogo ulterior. O fundamento não é apenas o exótico, o estranho, o familiar ou suas observações. Lidamos com as relações mútuas entre escrita e texto, o outro e nós construímos paralelos conceituais que podem existir ou não – o enigma da esfinge tornar-se uma reversão posta para a ciência antropológica: devora-me ou te decifro.
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REFERÊNCIAS
LÉVI- STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
LÉVI- STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro 1976.
WILLIAM, Roberto Cereja; MARGALHÃES, Thereza Cochar. Gramática reflexiva: texto, semântica e interação. 2 ed. São Paulo: Ed. Atual, 2005.
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. 4 ed.. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2011.
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. 4 ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2001.
BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982.
GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosacnaify, 2012.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008.
[1] A terminologia escritor se refere atualmente ao sentido de autor e o termo escrevente ao sentido de escritor comum.